Ministro do STF afirma que cenas da audiência de jovem catarinense que acusa empresário de abuso sexual são "estarrecedoras". Juiz aceitou argumento de que não houve a intenção de estuprar.
Após uma onda de repúdio se espalhar pelas redes sociais devido ao caso da influenciadora digital catarinense Mariana Ferrer, que diz ter sido estuprada por um empresário, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes se manifestou no Twitter nesta terça-feira (03/11), pedindo uma apuração sobre o ocorrido.
"As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram", escreveu o ministro.
Imagens divulgadas nesta terça-feira pelo site The Intercept Brasil mostram trechos da audiência que inocentou o empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar Ferrer numa festa em Florianópolis em 2018, quando ela tinha 21 anos. O vídeo mostra a jovem sendo humilhada pelo advogado de defesa de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho.
Na audiência, o advogado – que já defendeu Olavo de Carvalho e a extremista de direita conhecida como Sara Winter – mostrou fotos sensuais da época em que Ferrer era modelo para reforçar a tese de que a relação sexual com Aranha foi consensual.
O advogado disse que as fotos mostram "posições ginecológicas" e que "graças a Deus" não tem uma filha "do nível" de Ferrer. "E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher como você", afirmou.
"Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma que estou sendo tratada. Pelo amor de Deus, gente. O que é isso?", pediu Ferrer durante a audiência ao juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis.
O juiz acabou aceitando a argumentação do promotor responsável pelo caso, segundo a qual Aranha não tinha como saber que Ferrer não estava em condições de consentir o ato sexual e que teria ocorrido uma espécie de "estupro culposo", sem a intenção de estuprar, aponta o Intercept.
"A instrução criminal não indicou a presença de dolo na conduta do acusado, não restando configurado o fato típico e antijurídico a ele imputado, qual seja, o delito de estupro de vulnerável", escreveu o promotor Thiago Carriço de Oliveira em sua argumentação – uma tese sem precedente na Justiça brasileira. A defesa de Ferrer recorreu da decisão.
A expressão "estupro culposo"
O Intercept ressalta que usou a expressão "estupro culposo" para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. "O artifício é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo", diz nota publicada no pé da reportagem.
Ao jornal Folha de S.Paulo, o advogado Gastão da Rosa Filho se referiu à reportagem do Intercept como fake news. "Ele foi absolvido porque não foi comprovado aquilo que a Mariana tinha alegado, e não por 'estupro culposo'. Isso aí é uma grande inverdade e fake news. No processo, foram ouvidas várias testemunhas e nenhuma delas corroborou o que a Mariana falou. Temos vídeos, filmagens, que desmentem. Tudo que ela falou foi impugnado por prova pericial e testemunhal", disse.
Nesta terça-feira, o caso gerou uma onda de reações, com a frase "não existe estupro culposo" se espalhando pelas redes sociais. A hashtags #mariferrernaoestasozinha apareceu nos trending topics do Twitter. Famosos, como a atriz Camila Pitanga, também se posicionaram.
Ao Intercept, a promotora Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, disse que a tese jurídica da condição "culposa" para casos de estupro abre precedente para dificultar a demonstração desses crimes. "Denunciei centenas de processos de estupro, mas em nenhum dos meus casos me deparei com uma alegação como essa, é bastante diferente do que acontece nos processos de estupro."
O que diz a acusação
Segundo Ferrer, o estupro teria ocorrido em 15 de dezembro de 2018, numa festa no clube Café de la Musique, na badalada praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis. A jovem trabalhava como promotora do evento nas redes sociais.
Em seu depoimento à polícia, Ferrer disse que teve um lapso de memória entre o momento em que uma amiga a puxou pelo braço e a levou para um dos camarotes do clube e a hora em que desce uma escada escura. Um vídeo que circulou na internet e foi incluído no processo mostra a jovem aparentemente atordoada subindo uma escada com a ajuda de Aranha em direção a um camarote restrito.
Ela acredita ter sido dopada, e a única bebida alcoólica anotada na comanda do bar em seu nome foi uma dose de gim, segundo o Intercept. A reportagem aponta que Ferrer era virgem até então, como foi constatado por exame pericial.
Ao depor pela primeira vez sobre o caso, em maio de 2019, Aranha negou ter tido contato com Ferrer, mas neste ano, mudou sua versão, e disse ter feito apenas sexo oral na jovem. Além da mudança de versões, o processo foi marcado por troca de delgados e promotores, aponta o Intercept.
Em sua conclusão, o juiz Rudson Marcos afirma que "pela prova pericial e oral produzida considero que não ficou suficientemente comprovado que [Mariana Ferrer] estivesse alcoolizada – ou sob efeito de substância ilícita– , a ponto de ser considerada vulnerável, de modo que não pudesse se opor a ação de André de Camargo Aranha ou oferecer resistência".
Aranha é filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto e empresário de jogadores de futebol.