É o caso da terapeuta corporal aposentada Cleide Tomazini Aichele, 78
Mesmo com muita gente afastada de amigos e parentes por causa da pandemia do novo coronavírus, a leitura não precisa ser um hábito solitário. Se por um lado as pessoas têm menos perspectivas de sair das próprias casas, por outro, a tecnologia facilitou a interação entre leitores e propiciou o crescimento de um velho conhecido daqueles que não querem apenas viajar nas histórias contadas, mas compartilha-las com quem está na mesma página: o clube do livro.
É o caso da terapeuta corporal aposentada Cleide Tomazini Aichele, 78. Ela é uma das participantes mais ativas do Clube de Leitura 6.0, inciativa da Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo, em parceria com a Fundação Observatório do Livro e da Leitura, que atende 825 idosos em 26 cidades.
No começo do ano, Aichele chegou a comparecer a dois encontros no Núcleo de Convivência de Idosos do Centro de Assistência e Promoção Social Nosso Lar, na Mooca (zona leste de São Paulo). Mas a quarentena e o fato de todos os participantes serem do grupo de risco da Covid-19, fizeram as reuniões presenciais ficarem inviáveis. Quando as reuniões migraram para a internet, Aichele se animou a participar novamente. "Fui uma das primeiras. Quem já participava foi avisado e fomos um falando pro outro."
Sem medo de lidar com a tecnologia, ela diz que os encont ros virtuais até facilitaram a participação. "Antes era bem mais difícil", conta. "A gente recebia um tablet e tinha que ler junto ali na hora. Agora, eu posso ler tanto no computador quanto no celular. Se eu vou ao médico, aproveito a espera para adiantar a leitura." Para quem tem dificuldade, monitores e voluntários estão à disposição para ajudar.
Mãe de três filhos e avó de quatro netas, Aichele diz que dá vários palpites durante os encontros, que ocorrem por meio do Zoom. "Estou um pouco mais corajosa de comentar as coisas", diz ela, em tom de brincadeira. Tanto é que até sugeriu os contos do autor Hans Christian Andersen (1805-1875) para as próximas leituras. Os livros são sempre eleitos em votação pelos próprios participantes.
Após 60 anos de casada, ela perdeu o marido há dez meses, e diz que precisava de leituras mais leves. "O pessoal estava lendo Kafka e Machado de Assis, que falavam muito de angústia e sofrimento", lamenta. "Estava em um momento em que precisava de algo que me erguesse."
Junto com os monitores do programa, Aichele encontrou outro grupo. Há dois meses com esses novos companheiros, ela enumera diversas vantagens desse tipo de clube. "É gostoso, é bom para a nossa cabeça, ajuda a ficar mais inteligente e a gente compreende melhor as coisas", conta. "A leitura aproxima as pessoas e distrai."
A frequência até aumentou. Se antes os encontros presenciais eram de 15 em 15 dias, agora ela participa todas as semanas. "Isso nos obriga a ter uma disciplina", avalia. No momento, ela está lendo "Perto do Coração Selvagem", de Clarice Lispector. "Não tenho tanta facilidade para entender, mas as pessoas vão falando e a história vai clareando", diz. "Sempre tem uma ou outra que leu mais e ajuda."
E a ajuda não fica restrita apenas ao entendimento do livro em si. "Estou num grupo gostoso. Nesse momento em que eu estou, de perda do meu marido, foi uma companhia muito boa", conta.
"Estava bem mal, agora eu percebo que estou começando a ficar um pouco melhor." E olha que Aichele não era uma fanática pela leitura. "Não tinha o costume de ler, e hoje me arrependo", diz.
"Casei muito cedo, tive os meus pais e os pais dele para cuidar. Mas nunca é tarde para começar."
CLUBE DE LEITURA POR ACASO Criado durante a quarentena, o clube do Vá Ler Um Livro nunca teve versão presencial. Comandado pela professora Tatiany Leite, 26, ele iniciou no final de agosto, no YouTube, e tem quase 400 membros ativos. A relação de Leite com os livros vem de muito antes tal qual o trabalho com literatura. Aos 15 anos, ela se tornou aprendiz de produção da antiga MTV Brasil (1990-2013), que veiculava campanha em que mandava os jovens desligarem a TV e lerem um livro. Foi então que ela teve a ideia de criar um blog para resenhar.
Quando o YouTube começou a se destacar, ela fez parcerias com canais de "booktubers" (youtubers que falam sobre literatura) porque não queria aparecer na frente das câmeras. Foi convencida a fazer pelo menos um vídeo de teste e nunca mais parou.
No próprio canal, que hoje tem mais de 180 mil seguidores, ela apresenta conteúdos de duas vertentes: a educacional, voltada para livros que cairão em vestibulares pelo país, e a de entretenimento, em que privilegia a leitura como hobby. No clube, que surgiu quase por acaso, ela mistura as duas."Eu estava relendo 'Macunaíma' e brinquei durante uma transmissão ao vivo que devia fazer um clube de leitura", conta. "O povo gostou e eu falei: 'Então, vamos fazer'."
Ao todo, a obra de Mário de Andrade (1893-1945) foi tema de sete encontros virtuais. "É um dos livros mais difíceis da literatura brasileira, mas a ideia é justamente desmistificar, tirar do pedestal em que a gente coloca a literatura", conta. "A gente combinou que seriam três capítulos por encontro. Fizemos lives de 1h40 a 2h de duração e tivemos muita participação."
Leite diz que descobriu também que o livro estava na lista do vestibular da Universidade Federal da Bahia, o que acabou atraindo mais interessados. Cada um dos encontros, que ocorrem todos os domingos, às 20h, chegou a ter de 2.000 a 3.000 visualizações. Leite sempre inicia o debate com uma aula introdutória sobre a corrente literária do autor. "O tanto de doutorado que eu li para falar sobre esse livro", admira-se. "Nada é o que parece, tudo no livro tem muitos significados."
Além das transmissões, o clube troca reflexões por meio do aplicativo de troca de mensagens Telegram. É por lá que votam em quais serão os próximos livros que irão destrinchar. Atualmente, eles estão lendo em conjunto "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis.
Leite tenta explicar por que houve mais procura por conteúdos sobre literatura durante a pandemia. "Além da coisa do tempo, de as pessoas estarem mais em casa, tem o lance de ter que estudar em casa", avalia. "Tem gente que tenta entender por conta própria o que não assimilou durante a aula via Zoom."
"Quando criei o clube, achei que só ia ter gente mais velha", conta. "Aí eu vi um monte de gente muito novinha. Agora as faixas de idade estão bem mixadas, tem de 15 a 50 e tantos anos."
Ela diz que seu objetivo é fazer com que ambos os públicos circulem pelo canal e consumam também outros conteúdos, mas acabou ganhando de presente uma conexão maior com os próprios seguidores. "O clube tem facilitado esse processo de ter um link melhor com o público", avalia. "Nunca tinha sido tão próximo, já sei os nomes e a carinha de quem participa."
PODCLUBE Já o clube do Põe na Estante, criado pela apresentadora de rádio Gabriela Mayer, 32, nasceu de forma diferente. Primeiro, ela criou um blog, no qual escrevia suas impressões sobre o que estava lendo. Depois de deixar o espaço abandonado por alguns anos, ela teve a ideia de juntar duas de suas paixões –a literatura e os podcasts.
O clube do livro no formato de podcast funciona por temporadas (ela acabou de encerrar a terceira, e a quarta deve estrear em dezembro). A cada episódio, Mayer recebe dois convidados para discutir obras literárias. "Agora na pandemia, ele se expandiu e virou clube fora do podcast também", alegra-se.
As discussões ocorrem em transmissões ao vivo no Instagram, quinzenalmente às quartas-feiras, às 19h30. "Começou com o livro 'Fique comigo', da [autora nigeriana] Ayobami Adebayo", relata. "A gente fazia leituras conjuntas, dividia em partes e se encontrava. Um monte de gente topou participar. Na última live, o pessoal já falou: 'Vamos escolher o próximo'."
Depois disso, o grupo já emendou três livros em sequência e estão escolhendo o próximo. "Ler em conjunto na pandemia veio muito de uma reclamação de quem não estava conseguindo se concentrar", comenta. "Mesmo gente que lia muita coisa. Eu mesma, no começo, também estava com dificuldade."
Ela diz que costuma dar um tempo maior logo depois da escolha do livro para que os participantes tenham tempo de se familiarizar com a obra. "Tem que respeitar o ciclo de leitura das pessoas, para que a leitura seja uma coisa prazerosa", avalia.
Mayer acrescenta que o mais gostoso do clube é a interação entre os participantes. "É uma troca despretensiosa. Você capta uma referência que o outro não capta e vice-versa. Quando lemos o livro da Ayobami Adebayo, por exemplo, alguns leitores tinham conhecimentos sobre a Nigéria que eu não tinha."
Ao longo da vida, ela diz que participou pouco de clubes do livro com presença física. "Por conta dos meus horários, acabava não conseguindo participar do encontro", relata. "Já aconteceu várias vezes de ler o livro e não conseguir ir no dia."
Embora torça para a retomada de encontros presenciais, Mayer enxerga vantagens no modelo virtual, como flexibilidade de horários e a possibilidade de ter participantes de todos os lugares do Brasil. Ela afirma, porém, que tem coisas que não mudam entre os dois formatos. "É um espaço para fazer amigos.
Fiz uma grande amiga assim, trocamos mensagem sobre os livros e vimos que tinhámos muita afinidade."
VANTAGENS DOS CLUBES DE LIVRO VIRTUAL O economista e administrador Nelson Mattera Junior, 62, também vê benefícios em participar de clubes do livro em formato virtual. Assim como Aichele, ele não conseguia ler muito durante boa parte da vida. "Eu trabalhava no mercado financeiro, tinha uma vida muito agitada e não podia ter compromisso de leitura", conta ele, que agora divide sua atenção entre "O Clube dos Anjos", de Luiz Fernando Veríssimo, e "Flores Azuis", de Carola Saavedra.
Depois que decidiu priorizar a qualidade de vida, há cerca de quatro anos, ele passou a frequentar clubes do livro de forma presencial em diversos pontos de São Paulo, como na Casa das Rosas e na Biblioteca Parque Villa-Lobos, equipamento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, gerida pela Organização Social SP Leituras.
Com a pandemia, os encontros presenciais foram substituídos por virtuais e ele comemorou. "Eu fazia um deslocamento grande para participar", conta. "Moro no bairro da Saúde (zona sul de São Paulo) e ir para o lado do Parque Villa-Lobos (zona oeste) era difícil. É ruim pra ir e pior pra voltar", diz. "Sem querer, a gente acabou descobrindo uma coisa que é excelente", comemora. "Em uma cidade como São Paulo você pensar em se locomover é complicado. Esse encontro virtual é excelente, facilita em todos os sentidos."
Mattera, que costuma fazer suas leituras em um aparelho do tipo Kindle, diz que não é um expert em tecnologia, mas não teve problemas para fazer uso das ferramentas necessárias para participar (os encontros ocorrem via Zoom). "Não que eu fosse acostumado, a reunião virtual era uma exceção", avalia. "Mas, cá pra nós, a facilidade que você tem hoje é muito grande. A pessoa te passa um link e você aparecer na sala de reunião, é muito simples."
Após participar de quatro ou cinco dos encontros mensais, ele que notou que os participantes estão até mais animados com a nova interface. "Até percebo que hoje a participação é muito maior", relata. "As pessoas comentam mesmo, para elas é uma válvula de escape. Vejo que tem gente que até fica com a câmera fechada, mas o chat vai comendo solto. Todo mundo se manifesta de alguma forma."
Outra vantagem apontada por ele é a possibilidade de ter pessoas participando de outros lugares. No grupo da Villa-Lobos, por exemplo, ele diz que há uma participante de Curitiba. "O clube de leitura online possibilita que qualquer pessoa participe, isso é um fator que agrega muito", analisa. "Não precisa nem ser de outra cidade, é bom até para incluir a pessoa de uma camada mais simples, que mora na periferia e tem dificuldade de se deslocar até a biblioteca."
"Se você colocar na balança, para mim essa forma online é muito melhor", diz. "Você não está junto presencialmente, mas a interação é a mesma. Peço até para que, quando a biblioteca reabrir, não acabem com o clube virtual."