Especialistas e ativistas apontam as principais falhas criadas pelo sistema que deveria proteger as vítimas mas só as deixa mais vulneráveis
Há 14 anos em vigor, a Lei Maria da Penha foi desenvolvida para conter, prevenir e assistir às mulheres vítimas de violência doméstica. Desde então, ficou decretado que esse tipo de crime é responsabilidade do Estado brasileiro, e não mais simplesmente uma questão familiar. Mas, apesar dos avanços em relação aos direitos das mulheres a partir do uso desse dispositivo, pesquisas e números relacionados ao assunto nunca deixaram de mostrar que ainda há um longo caminho a ser percorrido em direção à erradicação do problema.
Há falhas graves no sistema responsável por garantir que a lei seja implementada, conforme mostrou a reportagem do Terra. Elas são encontradas já nos primeiros passos para a denúncia do agressor, quando a mulher se depara com burocracia e ineficiência desde o registro da queixa até a investigação policial. Outros muitos obstáculos se concentram nos entraves que o Poder Judiciário cria durante o processo e em problemas de interpretação da lei - que prevê um julgamento baseado em acolhimento à vítima, e não apenas em punir o agressor.
A falta de participação de todos os organismos públicos previstos na Lei Maria da Penha para a criação de uma rede integrada de acolhimento à vítima é outra grande dificuldade que impede que a mulher tenha o atendimento que é assegurado pela legislação.
As consequências dessas agruras colocam o Brasil na 5ª posição do ranking mundial de Feminicídio - quando o crime é motivado por questão de gênero -, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).
“Muitas coisas precisam melhorar. Se nós tivéssemos um sistema eficiente, os números não seriam esses que nós conhecemos e o Brasil não ocuparia esse lugar que ocupa no ranking mundial de violência contra mulher. Então nós precisamos avançar”, reconhece a presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Renata Gil.
A jurista chama a atenção para o fato de que a violência doméstica não é uma violência de minoria. O problema é que o assunto nunca foi tratado como prioridade pelas autoridades municipais, estaduais e federais. “Muitas pessoas pensam que a causa da mulher é uma causa pequena, que não é tão relevante. Esse pensamento é errado. A violência contra mulher tem índices altíssimos”, pontua.
Para exemplificar a declaração de Renata, em maio deste ano, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos apresentou um balanço nada positivo sobre o tema, que apontava um aumento de 74,6% nos registros de tentativas de feminicídio denunciadas pela Central de Atendimento à Mulher, por meio do Ligue 180. De 2018 para 2019 as notificações saltaram de 2.075 para 3.624.
O último dado brasileiro da pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), publicado em 2019, mostrou que 60% da população teve contato com situações de violência e assédio contra mulheres em seu bairro ou comunidade.
“O que temos observado é que a violência contra mulher não diminui. Mesmo antes da pandemia do novo coronavírus, quando vimos que houve um aumento significativo dos casos em relação ao mesmo período do ano anterior, não havíamos observado uma queda. Isso ainda não aconteceu”, enfatiza Juliana Martins, coordenadora institucional do FBSP.
Na avaliação dela, o isolamento social somado à precariedade econômica e à quebra de vínculos sociais e afetivos que costumam ajudar a vítima a perceber a situação de violência só colaboram para um cenário bastante preocupante e de muita vulnerabilidade para mulheres e meninas.
Juliana acredita que enquanto não se puder falar em igualdade de gênero sem que essa pauta seja vista por um viés ideológico, os índices de violência doméstica não vão diminuir. “Parece muito clichê e básico, mas a educação tem papel fundamental para mudar essa cultura que ainda é muito arraigada em nossa sociedade. Não raro a gente vê que o aumento da violência doméstica acontece quando a mulher vai trabalhar fora de casa, rompe um relacionamento abusivo, ou rompe com qualquer estereótipo da mulher submissa, que fica em casa e serve a família.”
A economista e pesquisadora de violência de gênero Caroline Moraes concorda que é pela educação o caminho mais efetivo para combater o problema. Fundadora da ONG Nós Mulheres, ela atua, por meio de palestras educativas em escolas e instituições, na “linha de frente” do principal passo para a prevenção dos casos.
“É um trabalho complicado, mas é bem gratificante também. Perceber que outras meninas vão levar esse conhecimento pra ajudar a libertar mães, tias, avós, e fazer com que elas não entrem nesses relacionamentos violentos e agressivos ajuda a gente a continuar”, conta.
A parte “complicada”, fica por conta da falta de estrutura e apoio do Estado, que não investe em políticas públicas para o combate à violência doméstica. “É triste porque se o Estado oferecesse uma estrutura que fosse mais acolhedora, se oferecesse educação suficiente para que as mulheres entendessem que elas podem procurar seria muito melhor”.
Conservadorismo e retrocesso do atual governo
A falta de interesse e envio de recursos para que os equipamentos e espaços que já trabalham com a pauta funcionem, especialmente no período de pandemia, no qual já foi constatado aumento de casos de feminicídio e violência doméstica em geral, só enfraquece o trabalho de quem realmente se dedica à causa.
“Infelizmente, antes mesmo da pandemia a política pública para o enfrentamento da violência doméstica já estava fragilizada. Isso já acontece há quase 3 anos e se dá muito em razão dos conceitos e da velha prática da descontinuidade de atuação governamental”, critica Regina Célia Barbosa, vice-presidente e cofundadora do Instituto Maria da Penha. Para ela, o atual governo não tem dado prosseguimento às propostas que haviam sido iniciadas no passado.
Um exemplo é a nova configuração da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180. “Agora, toda e qualquer violação dos direitos humanos se concentra em um número que nós estávamos usando para tentar definir especificamente a demanda, caracterizações e motivações da violência doméstica”, exemplifica Regina.
A CEO e co-fundadora do aplicativo Mete a Colher, Renata Albertim também reclama sobre o baixo investimento do governo em dispositivos destinados a garantia da segurança e proteção da mulher. “Acho que houve um retrocesso. A gestão atual tem uma perspectiva muito machista. E o fato de colocar a mulher como inferior ao homem e não dar espaço para ela, tira direitos básicos”, observa.
O avanço do movimento conservador, que ganhou ainda mais força com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, também “valida” atitudes por parte do Judiciário, Legislativo, Executivo ou sociedade civil que, muitas vezes, representam retrocesso para o que já foi conquistado e discutido no que diz respeito à mulher.
“Quando meios de comunicação, autoridades públicas ou um conjunto de pessoas que não apenas banalizam, mas vociferam ações de violência, como se natural fosse esse trato não apenas desagradável, mas criminoso contra as mulheres, além de irem totalmente contrário ao que prevê a lei e ao que prevê qualquer princípio ético, passam a referenciar pessoas e criar um ambiente no qual mais vidas são subjugadas pela violência sem que a gente consiga salvá-las”, declara uma das representantes da bancada feminina na Câmara e autora da lei que de combate à violência doméstica na Pandemia, a deputada Maria do Rosário (PT-RS).
Apesar de alguns membros, como a petista, a falta de representatividade feminina no poder também contribuiu para que o modelo de sociedade patriarcal se perpetue, evitando que as necessidades femininas sejam, de fato, ouvidas. “Quando a gente tem majoritariamente os três Poderes liderados e pensados por homens, é natural que a gente vá ter também apenas modelos masculinos de cidades, de educação, de economia e de política. Nós precisamos ocupar esses espaços na mesma quantidade que os homens”, defende a vice-presidente do IMP.
Por esses e muitos outros motivos, a estrada até o fim da violência doméstica é longa e dura, mas está sendo percorrida, se não pelo Estado, então pelos grupos do terceiro setor e a rede de apoio de mulheres que se mobilizam para acolher as vítimas. “Apesar de todos os contras, eu acredito muito no movimento de mulheres que não vai permitir que a gente perca o espaço que a gente já conquistou, com tanta luta, uma luta que não é de hoje, é de muito tempo”, finaliza a fundadora do Mete a Colher.