O Peru foi o primeiro país da América Latina a adotar o isolamento, mas por diversos motivos isso não ajudou a controlar a pandemia; saiba quais são eles
O Peru, primeiro país da América Latina a decretar a quarentena nacional e obrigatória para frear a expansão do novo coronavírus, chegou na terça-feira (23) a 100 dias de confinamento. Mesmo, assim, é o sexto país do mundo com mais casos confirmados (mais de 257 mil) e mais de 8,2 mil mortes por covid-19.
O confinamento começou em 16 de março, quando tinha registrado apenas 71 casos da doença, o que fez do Peru um dos países mais precavidos, com uma ação proporcionalmente muito mais rápida que de outros países, como Itália, Espanha e Reino Unido.
Mesmo assim, o vírus seguiu se espalhando a uma velocidade muito maior que as previsões iniciais, fazendo com que tanto peruanos quanto estrangeiros se perguntem o porquê dessa situação.
Apesar da quarentena ter cercido para evitar cerca de 100 mil mortes e 900 mil contágios, segundo os cálculos do Centro Nacional de Epidemiologia, a eficâcia do isolamento poderia ser ainda maior, se não fosse por diversas circunstâncias que aparentemente reduziram a ação das medidas de emergência.
Covid-19 de 'brinde' nos mercados
Os mercados, que eram dos poucos locais para os quais era permitido sair sob as restritas condições iniciais do confinamento, se transformaram rapidamente em grandes focos de contágio, por concentrar enormes aglomerações de pessoas.
Após um mês e meio com os mercados operando quase sem medidas de segurança, o governo começou a fazer exames rápidos nesses locais e deu o alerta: alguns, como o Mercado de Frutas de Lima, tinham 80% de seus vendedores infectados pelo coronavírus.
"Você vai comprar e leva a covid-19 de 'yapa' (gíria local para brinde)", alertou o presidente do Peru, Martín Vizcarra.
As medidas de isolamento contribuíram para aumentar as aglomerações nos mercados, que tiveram seus horários de abertura limitados por conta dos toques de recolher. A medida de permitir as saídas para homens e mulheres em dias alternados também contribuiu, causando enormes concentrações nos dias reservados para as mulheres.
Contágio sobre rodas
Os meios de transporte também sofreram aglomerações, especialmente nos horários de pico apesar de que, nos primeiros dias, cerca de 90% dos quase 2 milhões de automóveis que se deslocam diariamente por Lima estavam parados.
Com 10 milhões de habitantes e apenas uma linha de metrô, as poucas linhas formais de ônibus urbanos também se transformaram em pontos móveis de propagação para o vírus SARS-CoV-2.
Mesmo assim, nas redes de transporte os testes só começaram a ser realizados no fim de maio, quando se descobriu que entre 25% e 43% dos passageiros do metrô de Lima deram positivo. Já no Metropolitano, uma empresa de ônibus que opera nos corredores da cidade, a taxa de positivos foi de 13% a 15% dos usuários.
O transporte também ajudou o vírus, inicialmente concentrado em bairros da classe média, se propagasse em direção a regiões mais humildes onde, uma vez instalado, se disseminou com força.
Ajudas com efeito contrário
Sabendo que praticamente 70% da população economicamente ativa trabalha de maneira informal e vive do que ganha no dia a dia, o governo peruano lançou desde o início da quarentena um forte programa de auxílios e bônus para os lares mais pobres.
No entanto, essas ajudas estatais criadas para que os menos favorecidos ficassem em suas casas, acabaram gerando mais contágios, pois causaram grandes aglomerações nas agências bancárias nos dias de saque, já que muitas dessas famílias não possuemm contas bancárias e precisavam receber em dinheiro vivo.
O coronavírus também se disseminou durante a entrega de cestas básicas de alimentação, que estava a cargo dos prefeitos, o que atingiu em cheio as populações mais vulneráveis, como comunidades indígenas.
Foi o caso de Pucacuro, uma comunidade da etnia achuar, onde chegou uma comitiva municipal com vários funcionários infectados, incluindo o prefeito, que não respeitou nenhuma medida de segurança, em seu afá de entregar os alimentos logo.
Fuga para o campo
À medida em que o confinamento era estendido de quinzena em quinzena, muitas famílias ficaram sem recursos ou moradias, e começaram a migrar em massa desde Lima até suas regiões de origem, mesmo com uma proibição do transporte entre as províncias peruanas.
Isso não desanimou milhares de pessoas que, diante da possibilidade de morrer de fome em Lima, saíram para as estradas, dispostas a percorrer centenas de quilômetros a pé para voltar a seus locais de origem e ao apoio de suas famílias.
Tanto o governo nacional quanto os regionais tentaram controlar esses grandes grupos, fazendo testes rápidos e organizando traslados humanitários em ônibus e aviões. Isso, no entanto, não evitou que em alguns casos a covid-19 chegasse a locais remotos onde não estava presente até então.
As autoridades chegaram a disponibilizar alojamentos para que os viajantes pudessem cumprir uma quarentena obrigatória de 14 dias para evitar eventuais contágios, mas em muitos locais o isolamento não foi cumprido, o que colocou em risco todo o plano de prevenção.
Informalidade gigantesca
A partir de maio, a situação econômica ficou insustentável para a maioria de peruanos que trabalha na informalidade, já que os auxílios sociais só chegaram a uma pequena parte da população. Dessa maneira, eles se viram obrigados a sair às ruas para tentar ganhar algum dinheiro, rompendo em massa a quarentena.
Dessa forma, o confinamento na prática foi suspenso em algumas regiões de Lima, cujas ruas foram inundadas de vendedores ambulantes, muitos deles funcionários das centenas de galerias de comércio formal que o governo havia ordenado que ficassem fechadas.
Diante dessa evidência do descumprimento das restrições, o governo se viu obrigado a autorizar a abertura dos negócios formais esta semana, para evitar que tantas pessoas permaneçam nas ruas.
Além disso, quase desde o início da quarentena, a população desrespeitou em massa, por motivos sociais ou culturais, as ordens de confinamento em algumas regiões, como a cidade de Piura, no norte do país ou de Loreto, na Amazônia, que são depois de Lima as mais atingidas pela pandemia.