Medida chamou a atenção da área econômica e de técnicos de órgãos de controle, que consideraram o movimento atípico; pasta que cuida do Minha Casa Minha Vida diz que vai sanar eventuais falhar
O Tribunal de Contas da União (TCU) vai fazer uma fiscalização nas despesas do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) depois de a pasta ter reconhecido, apenas durante o mês dezembro de 2019, R$ 3,22 bilhões em dívidas referentes a bens ou serviços contratados em 2016 ou anos anteriores.
O que chamou a atenção foi o fato de o ministério que cuida do Minha Casa Minha Vida ter se comprometido com o pagamento a menos de um mês de os débitos serem cancelados, o que livraria o governo da obrigação.
É como se uma pessoa tivesse ficado três anos ou mais sem formalizar uma dívida por considerar que não havia justificativa para a cobrança, mas decidiu se comprometer a quitá-la a menos de 30 dias de ficar isento para sempre de efetuar qualquer pagamento.
O cancelamento dos débitos antigos era determinado em decreto editado em 2018. O texto prevê que serão canceladas despesas que ficarem encalhadas por mais de três anos no primeiro estágio do gasto público, que é o empenho (quando o órgão sinaliza o compromisso com o fornecedor de bens ou serviços). Para escapar da anulação, é preciso que a despesa avance em direção à “liquidação”, quando o órgão reconhece a entrega do bem ou serviço e garante o pagamento.
Segundo dados solicitados pelo Estadão/Broadcast ao Tesouro Nacional, R$ 4,75 bilhões em despesas contratadas pelo MDR entre 2007 e 2016 seriam canceladas segundo as normas do decreto, mas foram liquidadas ao longo do ano passado. Houve uma aceleração nessas operações nos meses de setembro, outubro e novembro, atingindo o pico em dezembro de 2019, quando R$ 3,22 bilhões foram reconhecidos - o equivalente a quase 70% do total de débitos “resgatados” do cancelamento pelo próprio ministério.
A manobra chamou a atenção da área econômica e de técnicos de órgãos de controle, que consideraram o movimento atípico. A maior parte das despesas “destravadas” com a liquidação feita pelo MDR foi originalmente contratada em 2013 e 2014 e até hoje não haviam obtido a comprovação de entrega do bem ou serviço. Há até mesmo gastos de 2007 que avançaram em 2019 após um longo período sem movimentação, escapando do cancelamento.
O movimento também se destacou porque os demais órgãos e ministérios, somados, livraram do cancelamento R$ 1,5 bilhão em despesas, menos de um terço dos gastos antigos liquidados pelo Ministério do Desenvolvimento Regional ao longo de 2019.
Restos a pagar
Antes do decreto, a equipe econômica se viu recorrentemente alvo de pressão, inclusive do Congresso Nacional, por seguidas prorrogações na validade dos chamados “restos a pagar”, como são rotuladas as despesas de anos anteriores. Muitos parlamentares usam a promessa de gasto do governo federal como uma conquista perante sua base de eleitores e, por isso, sempre brigam para evitar o cancelamento mesmo quando a despesa não avança.
Segundo apurou o Estadão/Broadcast, ministérios se insurgiram ao longo de 2019 contra o decreto que, pela primeira vez, levaria ao cancelamento dos gastos de forma automática, na tentativa de adiar a medida. Mesmo assim, só o MDR teve grande concentração de liquidações para evitar a anulação.
Diante dos números, o TCU informou ao Estadão/Broadcast que vai fiscalizar, durante o exame das contas de governo de 2019, operações relativas à execução orçamentária “selecionadas conforme critérios de risco”. “Isso inclui os procedimentos para liquidação de despesas e o cumprimento das regras para cancelamento de restos a pagar (despesas de anos anteriores) no final do exercício, englobando, portanto, as citadas operações realizadas pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR)”, disse o tribunal em nota.
Ministério diz que sanará eventuais falhas
O ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, informou por meio de assessoria que solicitou a seus secretários um levantamento das justificativas anexadas aos processos de reconhecimento de dívidas antigas (até 2016) que estavam prestes a ser canceladas. A pasta informou que qualquer eventual falha será “imediatamente sanada”.
“O Ministério do Desenvolvimento Regional reafirma seu compromisso com a regularidade e a transparência da gestão da sua execução orçamentária e financeira. Qualquer falha identificada será imediatamente sanada”, diz a nota enviada ao Estadão/Broadcast.
A pasta disse estar “ciente da preocupação do Ministério da Economia” com a manutenção das despesas contratadas entre 2007 e 2016 e que foram mantidas após o MDR ter reconhecido, em 2019, a entrega do bem ou serviço.
“Tão logo o material seja finalizado, o MDR o enviará para o órgão de controle”, diz a nota.
Comunicado
Em um primeiro esclarecimento, na semana passada, o MDR havia informado ao Estadão/Broadcast que reconheceu as dívidas seguindo orientação do Ministério da Economia e enviou à reportagem um comunicado emitido em 15 de outubro de 2019 pelo Departamento de Transferências da União, ligado à Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital. O documento tem como título “orientação quanto ao momento ideal para a liquidação de despesas relacionadas a convênios e contratos de repasse” para Estados e municípios e diz que a área “não vê óbices para que o empenho seja integralmente liquidado após satisfeitas as condições para liberação dos recursos”.
“Após a divulgação desse documento, a liquidação de despesas relacionadas a transferências voluntárias ocorreu com maior intensidade”, afirmou o MDR, sem detalhar de que forma o comunicado propiciou essa aceleração.
Procurado com essa informação, o Ministério da Economia disse que o comunicado “não altera nenhuma regra de liquidação de despesas de transferências voluntárias”, mas sim reforça os pontos a serem observados no processo de reconhecimento dessas dívidas. Foi após essa manifestação que o MDR disse que sanará eventuais falhas.
Técnicos ouvidos pelo Estadão/Broadcast avaliam que, com um reconhecimento de dívidas antigas tão elevado às vésperas do fim de 2019, há chances de ter havido alguma irregularidade, mas apenas uma apuração mais aprofundada poderá atestar isso.
Segundo apurou a reportagem, o comunicado repassado em outubro teve como objetivo orientar sobre algumas operações que poderiam estar fora das regras orçamentárias e teria, como efeito prático, reduzir as liquidações - não aumentá-las.