Durante mais de 50 anos, o desmatamento da Amazônia quase sempre começou com a abertura de uma estrada na densa floresta tropical. Com o asfalto chega o corte de madeira, depois as fazendas e finalmente a agricultura comercial e as cidades.
Na cidade madeireira decadente de Realidade, no Amazonas, os ecologistas dizem que a história parece prestes a se repetir.
Este vilarejo de várias dúzias de casas se situa nos restos da BR-319, uma rodovia construída pelos militares nos anos 1970 e logo abandonada. Hoje sua maior parte é intransitável durante os cerca de seis meses da estação de chuvas.
Os veículos que tentam atravessá-la durante os meses secos se arrastam pelo asfalto rachado, desviando de grandes buracos e entulho da selva.
Agora o presidente Jair Bolsonaro prometeu ressuscitar a estrada. Alguns especialistas dizem que projeto pode determinar o futuro da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo.
O governo Bolsonaro está trabalhando em um plano ambicioso para iniciar a reconstrução até 2021, parte de uma estratégia mais ampla para retomar o desenvolvimento econômico na região. Uma vez finalizado, o projeto religaria Realidade a Manaus, metrópole de 2 milhões de habitantes situada 600 quilômetros ao nordeste. Como a BR-319 não tem serventia durante a maior parte do ano, o resto do Brasil só chega a Manaus pela água e pelo ar.
"Temos a certeza que a nossa BR-319 será asfaltada", disse Bolsonaro em julho durante um evento público em Manaus.
A Secretaria de Comunicação disse que o presidente debateu o projeto com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, mas não quis comentar além disso.
Pesquisadores da Amazônia disseram que a estrada recapeada desencadearia uma explosão de desmatamento no Amazonas, atualmente o Estado com a floresta tropical mais bem preservada do país justamente por ter poucas estradas boas. Uma rodovia até Manaus permitiria que agricultores de subsistência, especuladores agrários e madeireiros penetrassem nos confins da selva, disse Philip Fearnside, ecologista norte-americano do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia de Manaus que tem examinado o vínculo entre as estradas e o desmatamento.
Um estudo liderado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) estima que o projeto resultaria em um aumento de cinco vezes no desmatamento até 2030.
Incêndios na Amazônia causaram um grande estrago neste ano, provocando uma reação global que acusou o governo Bolsonaro de não fazer o suficiente para proteger a floresta tropical.
O presidente defendeu suas políticas ambientais, além do direito de Brasil desenvolver seu território, como as nações industrializadas fizeram com os seus. Ele tem alertado líderes internacionais a não interferirem nos assuntos internos do Brasil.
Um importante pesquisador na área climática, Carlos Nobre, da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a Amazônia está se aproximando de um ponto de inflexão depois do qual a floresta tropical entraria em um ciclo autossustentável de "morte de fora para dentro", tornando-se uma savana.
Cerca de 15% a 17% da floresta já foi destruída, e o ponto sem volta é a marca de 20% a 25%, diz Nobre.
Tal declínio liberaria quantidades enormes de gás de efeito estufa e tornaria mais difícil restringir o aumento das temperaturas globais à meta de 1,5 a 2 graus Celsius, que visa evitar os piores efeitos da mudança climática, dizem Nobre e outros especialistas.
"Com a BR-319, cruzaremos esse ponto de inflexão, isso é mais do que suficiente", disse Britaldo Soares Filho, professor da UFMG que realizou simulações das perdas esperadas caso a estrada seja pavimentada. "Você está abrindo uma fronteira totalmente nova pelo núcleo da floresta amazônica.".
O governo diz que tais temores são exagerados. Mateus Salomé do Amaral, subsecretário de Gestão Ambiental e Desapropriações do Ministério da Infraestrutura, diz que a reabertura planejada da BR-319 não pressagia um desastre ecológico. Na verdade, disse ele à Reuters, isso permitiria que fiscais ambientais policiassem a área com mais facilidade.
"Nosso objetivo não é gerar desmatamento", disse Amaral.
Ambientalistas e procuradores públicos recorreram aos tribunais para impedir outros projetos, mas a maioria se resignou à perspectiva de a BR-319 ser asfaltada devido ao apoio local fervoroso. Ao invés de lutar, eles disseram que pleitearão para que a preservação ambiental seja incluída na iniciativa.