"O Brasil é aqui", diz morador da comunidade Vietnã, onde famílias vivem expostas aos ratos. Veja na 2ª reportagem da série "O drama do saneamento"
Os 20 anos da paraibana Cícera de Souza, de 51 anos, na cidade de São Paulo, passaram muito mais rápido do que as águas do córrego à beira de sua palafita. Em pleno século 21, na maior metrópole do Brasil, elas continuam as mesmas: sujas de esgoto, que é jogado das casas por tubos de PVC improvisados, e se mistura às sacolas plásticas, pneus, lâminas de raio-X e até sofás que são jogados no leito.
Cícera veio para a capital paulista em busca de uma vida melhor. Mas, ao se entrar na comunidade Vietnã, escondida no bairro do Jabaquara, onde ela mora, vai se mergulhando em uma realidade sombria, em meio a ruelas de pedra, casas apertadas, sujeira e semblantes que misturam inconformismo e tristeza. O cenário lembra o das cidades mais pobres e apertadas, na África ou no Oriente Médio.
"De que adianta limpar a casa se os vizinhos não limpam?", diz Cícera, ainda reticente ao entrar em contato com um estranho.
Ela não conhece outra forma de viver, aqui em São Paulo, que não seja jogando no rio, um prolongamento da Avenida Água Espraiada, todo o esgoto produzido em casa.
"Sempre foi assim, a gente joga, não tem jeito", diz. No local, assim como em boa parte do País, não há nenhum sistema de coleta. A água potável só chegou há sete anos, com tubos ligados às palafitas, que são casas construídas em terreno invadido.
É uma forma irônica de o governo admitir a precariedade da região. Libera água para locais irregulares, mas, no momento de saneá-los, destaca a impossibilidade com o argumento de há que dificuldades porque são irregulares. Enquanto isso, os moradores praticamente dormem, brincam, choram e sonham sobre as fezes.
Há uma casa na região, mais afastada do rio, em que, após as águas transbordarem com a chuva, há alguns dias, ficou até hoje rodeada de esgoto, a alguns centímetros de onde moram um bebê com sua mãe. Já nos tempos da Grécia antiga eram construídos locais para depósitos de fezes longe das casas.
No Império Romano, a água também começou a ser separada do esgoto, com ruas dotadas de encanamentos e a construção de aquedutos e de fontes, no intuito de prevenir doenças.
Eis que, mais de 2 mil anos depois, a nora de Cícera, Kathlin de Oliveira, 21 anos, então, se aproxima. Desce de seu barraco, pisando com segurança na madeira bamba, trazendo o pequeno José Miguel, seu filho, de quase dois anos, no colo.
O menino, com um blusão, jeans e tênis simples, tem os olhos atentos e o semblante sério. A fisionomia dos três revela algum tipo de abatimento. É como se eles se envergonhassem de estarem lá.
"A gente coloca repelente no menino, há muito inseto. À noite os ratos sobem. A gente limpa, não adianta. O rato sobe na minha cama, afasto, ele volta. Não consigo dormir, fico acordada por causa disso", conta Cícera.
Quando chove, a água sobe quase até a porta. Isso em toda a região, inclusive no asfalto. E as pessoas ficam confinadas, abafadas em seus barracos. Na parte de fora, um silêncio aterrador cai com a noite, cortada por algumas luzes tímidas, que dão um sinal de vida nas moradias. O rio continua correndo, mas mantendo tudo na mesma. O medo e a vergonha continuam emanando de seu ritmo monocórdio e insalubre. Os ratos correm pelos matagais.
As crianças dormem, inocentes. Os adultos, enquanto tentam descansar, se remexem no colchão duro, acuados pelo peso do cenário que os rodeia, tentando se defender da poluição, não só do rio, mas humana. Eles dormem esquecidos, marginalizados nas 57 comunidades do Jabaquara, mais voltado para suas ruas ajardinadas e prédios de arquitetura moderna.
"Eu sei que a solução é muito difícil. Mas é preciso união maior do poder público, da iniciativa privada, da sociedade e da conscientização de parte da comunidade, para deixar de jogar sujeira nas ruas e nos rios. Mas, de uma maneira geral, falta essa união e um olhar mais humano para a nossa região", diz o líder comunitário Jhones Rodrigues, 37 anos, que nasceu no bairro.
No Brasil, 46% das pessoas estão na mesma situação de Cícera e seus familiares. Não contam com nenhum tipo de coleta de esgoto. O que faz Jhones completar:
“Isso ocorre em São Paulo, em Goiás, em qualquer Estado. Não tem como fugir, é uma realidade do nosso País. O Brasil é aqui. E o pior, em vez de se solidarizar, muita gente de fora olha para cá com preconceito.”
Somente em 2007 foi criada a Lei Nacional do Saneamento, que já foi modificada, se tornou um outro projeto de Lei em 2018, que deverá ser base para um novo marco regulatório para o setor, a ser aprovado pelos deputados federais provavelmente ainda neste ano.
Uma das metas de um plano criado a partir da lei, o Plansab (Plano Nacional do Saneamento Básico), é universalizar o saneamento para a população até 2033, algo considerado impossível pela maioria dos especialistas, devido ao baixo ritmo dos investimentos.
A Sabesp, em nota, analisa o problema sob um prisma social.
“A maior complexidade e dificuldade estão relacionadas às áreas de ocupação irregular (como a da comunidade Vietnã), principalmente pela impossibilidade de atuação da Sabesp nessas regiões. Via de regra, são ocupações em áreas de risco não urbanizadas, com dependência das prefeituras para ações de desocupação e de programas sociais habitacionais, necessitando de liberação do poder público para implantação de infraestruturas de saneamento. Como já dito, a dinâmica dessas ocupações tem se acelerado, impactando as propostas de solução.”
Já a Prefeitura de São Paulo considera que houve uma reocupação e por isso não vê prioridade em atuar na área.
"Trata-se de uma reocupação irregular. Em 2011, a Prefeitura realizou remoções no local devido à Operação Urbana Água Espraiada e também por determinação judicial, que sinalizou a área como sendo de risco. Na época, 192 famílias da Comunidade Vietnã foram cadastradas pela Secretaria Municipal de Habitação. Destas, 176 já foram contempladas com unidades habitacionais. As famílias que não foram atendidas de forma definitiva com moradia ainda recebem o benefício do auxílio-aluguel. A reocupação da área começou em 2014, se agravando em 2018. Por se tratar de uma área reocupada, não há prioridade no atendimento das famílias que vivem hoje na Comunidade do Vietnã, mas as mesmas podem realizar o cadastro habitacional da Cohab e aguardar a demanda de espera por habitação", diz a prefeitura, em nota.
Voltemos a Kathlin, parada em frente à sua casa, tentando descrever como é sua vida. Observa os arredores, voltada para a parte baixa da casa, entremeada de madeira e barro, no barranco do rio. Parece que não tem para onde olhar, apenas para um ponto no infinito, que se torna uma tela da imaginação, o único lugar de onde ela pode vislumbrar o mundo, sem sair de onde está.
“Agradeço por ter conseguido terminar o primeiro grau. Mas agora não sei o que quero fazer. Tenho que cuidar do meu filho. Fico triste com a situação em que vivemos. Penso nisso o tempo inteiro. Ôxa, sonhamos muito! Sonho com uma casa melhor. Vou me sentir realizada quando eu morar em um apartamento”, revela.
O marido dela, José Marcos, filho de Cícera, sai cedo para atuar como ajudante de pedreiro, recebendo em torno de R$ 1 mil por mês e trabalhando 12 horas por dia. Cícera só deixou de trabalhar como auxiliar de limpeza por causa de um problema de audição.
“Procuro emprego, mas hoje ninguém me chama por causa do meu problema”, lamenta.
Na parte asfaltada da região, a palavra comunidade ganha todo sentido. No comércio que ainda existe, os moradores se cumprimentam quando se cruzam.
João Vieira dos Santos, de 60 anos, é outro líder comunitário. Comunicativo, olhar vigoroso, vai contando um pouco da história do local. Há poucos meses, perdeu sua casa por causa de um desabamento, causado por um vazamento que não foi consertado da forma correta, segundo conta.
O senhor mostra o local, no meio da Rua José Marun Atalla. Ao fundo, um horizonte de casas dá um toque acinzentado à paisagem com poucas árvores. Ele diz que recebeu indenização da Sabesp, de pouco mais de R$ 40 mil, para reconstruir o muro, mas, poucos meses depois, toda a frente desabou, o muro, a calçada e inclusive a parede da cozinha.
“Quase perdi minha irmã e meu sobrinho. Nestes anos todos, sempre ajudei a todos. Agora, pela primeira vez, estou precisando de ajuda. Perdi minha casa, estão me pagando um aluguel que está para vencer. Não vou ter onde morar. Nem tenho como reconstruir a casa. Sempre trabalhei para políticos, com carro de som e tudo. Na época de eleição, todos vêm me procurar, mas agora ninguém me dá ouvidos. Estou desamparado nesta situação”, desabafa.
João, porém, vai apontando outras dificuldades da região.
“Nas casas altas, o esgoto tem coleta. Nas baixas, aqui no asfalto, vai tudo para aquele rio (o mesmo onde existem os barracos). Na parte com asfalto também temos problemas com saneamento. E olha esses fios, todos enrolados naquele poste que está para cair. Já chamei as autoridades, falaram que não podem fazer nada agora. Já aconteceram incêndios graves aqui”, reclama.
Já na rua Atos Damasceno, o Bar do Paraíba é uma das atrações. Outras são algumas vendas que oferecem belas frutas da estação. São como consolos para a dura vida da região. Outro consolo é o vínculo afetivo entre os moradores.
Existente até para os que entraram na criminalidade, que, nesta região são minoria, mas ainda existem, segundo Jhones.
Hoje a situação está mais tranquila, mas o nome Vietnã veio nos anos 70, em alusão à Guerra do Vietnã e para descrever o grau de violência desta região, já considerada uma das mais perigosas de São Paulo.
Em meio à rotina que não tem como parar, os moradores da beira do córrego se viram da maneira que podem. O garoto Marcelo, de chinelo e bermuda, encontrou um espaço para coletar o lixo e vendê-lo para reciclagem. É a maneira de ajudar a família, conta, sem querer falar mais nada.
Já Cícera se sente aliviada com o fato de poder falar. Se sente acanhada, não quer tirar foto, acha que está feia, diz. A conversa funciona como terapia e faz brotar um sorriso de seu rosto.
“Pode tirar uma foto, vocês são bonitas, acreditem”, ouve de seu interlocutor. Cícera e Kathlin, então, sorriem ainda mais. E continuam falando, posando, ousando fazer um pouco do que sempre sonharam. Até o pequeno João Miguel, enfim, deixa de lado as desconfianças e dá uma risada.
Naquele momento, eles se esqueceram do que os cerca. Veem além do que suas vistas podem alcançar. É como se os pensamentos deles corressem com o rio até uma nascente pura. Cícera e sua família saem por instantes da caverna em que se acostumaram a morar.
E se sentem iguais a qualquer um. Com os mesmos direitos. Direitos humanos. A poluição daquele rio deixa de ser só delas. Com justiça, ganha um formato novo, sendo compartilhada com todos os seres humanos, os que também poluem com ganância e indiferença.
Então a pureza emerge, acima de tudo, naqueles sorrisos, com um brilho que torna aquelas águas tão plácidas e límpidas como no bosque de uma fábula. Cícera, Kathlin e o menino José Miguel revelam de súbito a própria nobreza.
Tão real quanto a dos príncipes e princesas na Bela Adormecida ou na Branca de Neve. É como se eles acordassem de um sono profundo e vissem beleza na luz indiferente do céu. Refletindo neles mesmos um sopro de esperança.
“Não posso e não vou ver meu filho crescer brincando nas margens sujas deste rio”, promete Kathlin.
Os três sorriem porque, por instantes, perceberam que a poluição não é um fardo pertencente apenas a eles. Deve ser dividida entre todos os humanos. E não somente entre os fragilizados, como Cícera e tantos brasileiros, que acabam sufocando a própria pureza. E se sentindo tão distantes dos outros, cuja única diferença é simplesmente poderem dar a descarga.