Presidente sancionou lei aprovada pelo Congresso. Para especialistas, decisão do governo pode piorar condições do sistema carcerário
O presidente Jair Bolsonaro decidiu vetar o artigo da nova Lei Antidrogas que permitiria que a Justiça aplicasse penas mais baixas para traficantes flagrados com pequenas quantidade de drogas. Para especialistas, a decisão do governo federal tem "espírito punitivo” e pode piorar problemas relacionados ao tráfico, como o aumento contínuo da população carcerária e, consequentemente, de pessoas que devem passar às fileiras de facções criminosas.
O texto, publicado nesta quinta-feira, 6, sanciona um projeto de lei de autoria do ex-deputado e hoje ministro da Cidadania, Osmar Terra, mas com uma série de vetos. Um dos artigos recusados previa redução de 1/6 a 2/3 da pena de tráfico de drogas em duas situações diferentes: se fosse réu primário e não participasse de organização criminosa ou se fosse pego em “circunstância” ou quantidade de droga de “menor potencial lesivo”.
Na legislação atual, o crime de tráfico tem pena mínima de 5 anos e, portanto, deve ser cumprida em regime fechado. Se aplicado o atenuante máximo, que acabou vetado por Bolsonaro, o preso poderia até cumprir pena em regime aberto, segundo juristas.
Na justificativa do veto, o governo escreveu que “a propositura se mostra mais benéfica ao agente do crime de tráfico” e que poderia dar “tratamento mais favorável para agentes que não sejam primários, que não tenham bons antecedentes ou que sejam integrantes de organizações criminosas, o que se coloca em descompasso com as finalidades da reprimenda penal.”
Para Cristiano Maronna, secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, o governo aposta em “endurecer o combate ao tráfico de drogas”. “A ideia é de que nenhum benefício deve ser concedido, o que revela uma visão punitiva e militarizada”, diz. “Essa política tem sido implantada há anos, sem resultados positivos para a sociedade e sem ao menos fazer cócegas no tráfico. Quando alguém é preso, rapidamente outra pessoa é posta no lugar.”
Segundo Maronna, a sanção da nova lei também não resolve o problema de falta de critério objetivo na hora de a Justiça distinguir quem é usuário de droga (considerado de menor potencial ofensivo) de pequenos, médios ou grandes traficantes (caso em que o crime é equiparado a hediondo). “É uma loteria”, diz. “Diante desse quadro, falar em combate ao tráfico de drogas é fácil. Difícil é reconhecer que lei é um vetor de injustiça e, na prática, representa insegurança jurídica e um campo aberto para todo tipo de arbitrariedade.”
O Estado mostrou que, sem um critério específico na lei, a definição do crime, na prática, é dada pelo delegado de polícia em um primeiro momento. Com isso, pessoas pegas com a mesma quantidade de drogas podem ser indiciadas como traficantes ou usuários a depender de critérios como escolaridade, por exemplo. A reportagem também mostrou que a definição não é consenso no meio e há profissionais que entendem que a pequena quantidade é, na verdade, uma estratégia do crime organizado para minimizar prejuízos.
“Na minha visão, o espírito dessa lei que foi aprovada é não possibilitar liberdade”, diz a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). “O parágrafo era um benefício que o juiz poderia conceder, se o indivíduo respeitasse determinadas características e demonstrasse não ser perigoso.”
Para Ivana, o endurecimento da legislação deve impactar ainda mais o número de prisões no Brasil, cuja a alta histórica já tem sido puxada por tráfico de drogas, hoje o crime que mais encarcera. “A massa carcerária envolvida com trafico já é gigantesca e vai aumentar muito”, diz a desembargadora. “Ao ingressar na prisão, a pessoa termina sendo obrigada a escolher uma facção criminosa. A partir daquele momento, ele vai ser parte da facção – e não mais da sociedade. É muito triste assistir a tudo isso.”
Segundo dados do Ministério da Justiça, a população carcerária no Brasil dobrou em uma década, saindo de 361 mil em 2005 para 726 mil em 2016. O aumento substancial tem como uma das explicações a explosão de prisão de suspeitos de tráfico de drogas: de 32 mil para 151,7 mil, ou cinco vezes mais, no período.
“O Brasil vive ilusão de que, mudando lei, a gente muda a realidade”, afirma Rafael Alcadipani, professor Adjunto da FGV-EAESP, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para ele, a legislação sancionada representa uma tentativa de “solucionar problemas complexos com uma decisão simplória.”
“O presidente do Brasil vai contrário a tudo que o mundo está fazendo. Se nos Estados Unidos, Canadá e parte da Europa, por exemplo, a tentativa é de regulamentar melhor a questão do mercado da droga, aqui no Brasil está querendo punir o pequeno traficante ou até mesmo o usuário”, diz. “Mas a gente não pode culpar o presidente porque ele foi eleito com essa plataforma.”
Presidente veta aumento de pena mínima a traficantes ligados a organizações criminosas
O presidente também vetou o aumento da pena mínima para traficantes ligados a organizações criminosas. No Congresso, a proposta aprovada previa que a pena seria elevada de 5 para 8 anos. "Esse veto melhorou a lei. Não piorou, nem enfraqueceu. Meu projeto original estava baseado em uma legislação antiga. Com a legislação nova, a organização criminosa tem uma pena maior, então aumenta a pena (de tráfico) e o veto foi adequado porque fica valendo a lei que trata de organização criminosa", disse o ministro Osmar Terra.