Proibição restringe acesso de mulheres a aborto nos casos legais, afirmam especialistas
A proibição da venda de medicamentos abortivos — à base de misoprostol — em farmácias do Brasil, vigente desde 1998, não tem justificativas médicas ou legais. É isso o que afirma a Defensoria Pública da União, que realizará nesta quinta-feira, dia 28, em São Paulo, uma audiência pública para discutir o tema e propor novas resoluções à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O argumento é de que essa restrição viola o direito à saúde de mulheres que querem interromper gestações em casos já previstos por lei — estupro, feto anencéfalo e risco para a vida da mãe.
Hoje, remédios com o princípio ativo misoprostol só podem ser usados em hospitais. E não em qualquer hospital do país, mas apenas naqueles credenciados pelo Ministério da Saúde para a realização de aborto legal.
Um dos aspectos ressaltados pela Defensoria Pública é que essa proibição vai contra as mais recentes orientações da Organização Mundial da saúde (OMS), que publicou em janeiro deste ano guia chamado “Medical Management of Abortion”. Esse documento consolida o aborto medicamentoso como a estratégia mais segura e menos onerosa para o sistema público.
— A proibição da venda de misoprostol em farmácias é inconstitucional. Viola o direito à saúde. Esse tipo de venda precisa ser feito, sob prescrição médica e com retenção da receita nas drogarias. Nessa área, o Brasil está muito atrasado. O país não está de acordo com as melhores práticas internacionais para garantir o melhor tratamento possível para quem vai fazer aborto legal — afirma a defensora pública federal Fabiana Severo.
Ela lembra que mesmo países onde o aborto não é totalmente legal facilitam o acesso ao medicamento abortivo, para atender com mais rapidez os casos legalizados. Um exemplo é a vizinha Argentina, que possui uma legislação parecida com a do Brasil (permitindo o aborto em caso de estupro ou de risco para a saúde da mãe) e passou a vender o misoprostol nas farmácias em 2018.
— Nós fizemos o caminho oposto ao da Argentina: vendíamos o misoprostol em farmácias nos anos 1990, mas depois proibimos. É um retrocesso que precisa ser corrigido, e que já levou tempo demais. São resoluções proibitivas deste tipo que contribuem para o número tão alto de abortos no Brasil — destaca Fabiana, que atualmente cumpre um mandato de dois anos como defensora regional de Direitos Humanos em São Paulo.
Diversos países, entre desenvolvidos e em desenvolvimento, dispõem do medicamento em farmácias. Entre eles, Estados Unidos, Canadá, México e Índia. Há, ainda, um estudo de 2017 feito em seis países da América do Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Peru e Uruguai) que concluiu que o Brasil é o que tem legislação mais restritiva e o único que não disponibiliza o misoprostol diretamente às mulheres (para venda em farmácias ou nos serviços de saúde). Essa pesquisa foi feita pelo Consórcio Latino-americano Contra o Aborto Inseguro (Clacai), com sede no Peru.
Até informações sobre remédio são restritas
A DPU enviou à Anvisa, em fins de fevereiro, uma recomendação de revisão de protocolos sobre esse tipo de medicamento. A maioria dos protocolos da agência sanitária sobre esse assunto tem mais de dez anos, sendo considerados desatualizados. Fabiana Severo é a responsável por esse documento de recomendação. Passado um mês, a Anvisa ainda não respondeu, e, agora, o assunto será debatido na audiência pública desta quinta, das 13h às 18h, no Auditório da DPU/SP.
Um representante do setor técnico da Anvisa, Gustavo Mendes Lima Santos, está confirmado na audiência. Também participarão médicos e pesquisadores da área. Além de discutir a venda em farmácias, a audiência também vai abordar o direito à informação sobre o misoprostol. Hoje, no Brasil, vigoram resoluções da Anvisa de 2006 e 2011 que vetam a divulgação de informações sobre esses medicamentos para "público leigo, por serem de venda sob prescrição médica e restrito ao uso de hospitais". A DPU pede que essa norma seja derrubada.
Impacto na qualidade de vida das mulheres
Daniela Pedroso, psicóloga do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do Hospital Pérola Byinton — a maior referência em aborto legal do país —, em São Paulo, ressalta que a falta de acesso ao misoprostol em farmácias e a falta de informação sobre o medicamento e sobre os serviços de aborto legal fazem com que muitas mulheres demorem demais a ter atendimento adequado.
— O maior prejuízo é que muitas mulheres tomam uma série de produtos que encontram no mercado negro, e que não são à base de misoprostol de verdade, e só quando eles não funcionam é que elas procuram um hospital. É um grande risco porque elas podem ter ingerido qualquer coisa — diz Daniela.
Ela explica que, caso o remédio volte a ser vendido em farmácias, as mulheres poderiam tomá-lo sozinhas, em casa, após prescrição médica com orientações sobre como e com que frequência ingerir.
Daniela também lembra que muitas gestantes nem sequer sabem em quais situações o aborto é legalizado no país. — Em geral, é só depois de elas tentarem abortar por meios inseguros que elas descobrem que têm o direito garantido por lei, por exemplo, se engravidaram em consequência de um estupro. Boa parte da população não sabe das situações em que a lei garante o aborto. Muitas mulheres se expõem a um perigo em vão.