Presidente compartilhou em sua conta no Twitter vídeo em que duas pessoas realizam ato obsceno em meio a bloco de Carnaval em SP. Ação diz que publicação colocou a dupla em risco e desrespeitou direitos garantidos na Constituição.
Os advogados das duas pessoas que aparecem no vídeo do "golden shower", divulgado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) logo após o Carnaval, impetraram um mandado de segurança nesta terça-feira, no Supremo Tribunal Federal (STF), exigindo que o presidente apague as publicações em sua conta no Twitter.
A peça jurídica, composta pelos advogados Flavio Bizzo Grossi e Cynthia Almeida Rosa, o presidente teria extrapolado suas funções como chefe de Estado ao expor as pessoas que aparecem no vídeo, as colocando em risco e desrespeitando direitos garantidos na Constituição, como respeito à imagem, à honra e à livre expressão artística.
Nesta quarta-feira, o ministro Marco Aurélio Mello foi sorteado como relator do caso. Até hoje, a Justiça brasileira nunca determinou a nenhum presidente da República que apagasse postagens feitas em redes sociais.
O pedido explora uma área ainda nebulosa e pouco discutida da legislação, ao abordar no STF os limites da atuação do chefe de Estado em suas redes sociais.
O mandado de segurança, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, corre em sigilo no STF. No texto, os advogados argumentam que um presidente "criticar um Senador da República porque este tem uma determinada visão da política econômica é uma coisa, criticar um artista de enorme exposição midiática é outra, a qual é bem diferente de criticar um cidadão comum".
A dupla retratada nas imagens, segundo seus representantes legais, "não tem poder político, econômico ou imagético para fazer frente à poderosa máquina de comunicação em torno do Presidente da República".
Ainda segundo o texto, eles teriam sido obrigados a abandonar suas casas em São Paulo e buscar abrigo em outro Estado após serem "vítimas de retaliações desproporcionais e absurdas nas ruas de São Paulo e nas redes sociais".
Procurada, a Advocacia-Geral da União diz que "ainda não foi intimada pelo relator do Mandado de Segurança 36364, o que impossibilita qualquer manifestação da instituição no momento".
No dia seguinte às postagens de Bolsonaro, o Planalto enviou uma nota à imprensa para esclarecer o posicionamento do presidente.
Assinado pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência, o texto dizia que "não houve intenção de criticar o Carnaval de forma genérica, mas sim caracterizar uma distorção clara do espírito momesco, que simboliza a descontração, a ironia, a crítica saudável e a criatividade da nossa maior e mais democrática festa popular".
A nota acrescentava que as cenas "escandalizaram" não apenas Bolsonaro, como "grande parte da sociedade" e representam um "crime tipificado na legislação brasileira".
A BBC News Brasil procurou os dois advogados, mas eles preferiram não responder aos questionamentos. Segundo a reportagem apurou, ambos atuam voluntariamente na defesa da dupla.
Relembre o caso
Postado pelo presidente da República no Twitter em 5 de março, o vídeo que mostrava duas pessoas dançando em cima de um ponto de táxi durante um bloco de Carnaval em São Paulo.
Nas imagens, elas praticam atos obscenos, incluindo uma cena em que um urina no outra - prática fetichista conhecida como "golden shower".
Junto às imagens, Bolsonaro escreveu: "Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conslusões (sic)".
O presidente tem, atualmente, quase 3,8 milhões de seguidores apenas no Twitter. Até a publicação desta reportagem, o tuíte de Bolsonaro havia sido compartilhado 13,4 mil vezes, comentado por 65 mil perfis e curtido por 87 mil pessoas na rede social.
As imagens também foram replicadas em portais e outras redes sociais como o YouTube e o Facebook.
A publicação do vídeo gerou controvérsia imediata, com milhares de pessoas criticando o que consideraram "falta de decoro", postagem de imagens escatológicas que não representam o Carnaval e uma tentativa de desviar a atenção dos protestos de foliões contra o presidente nos blocos de rua.
Apoiadores do presidente, por sua vez, defenderam o uso do vídeo para fazer o que consideram uma denúncia. Para a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), por exemplo, o vídeo teria exposto a hipocrisia de parte da esquerda.
"Essa esquerda que mostra bundas e peitos nas ruas, que usa símbolos religiosos pra cometer atos profanos em praça pública, que apoia exposições com adultos pelados para crianças tocarem, agora está 'chocada' com o vídeo compartilhado pelo presidente", escreveu a política, atual líder do governo no Congresso.
Em meio ao debate, o presidente tuitou novamente, fazendo uma pergunta: "O que é golden shower?". A referência foi ao termo em inglês que define um fetiche sexual que envolve a prática de urinar sobre o parceiro.
Quem são os retratados no vídeo?
As duas pessoas que aparecem nas imagens são apresentadas no pedido de mandado de segurança enviado ao STF como artistas.
Procurados pela reportagem, eles preferem manter sua identidade em anonimato por medo de ataques ou represálias.
Ambos fazem parte de um coletivo artístico chamado EDIY, um grupo pequeno cuja página no Facebook tem apenas 115 seguidores.
Já a cena registrada no vídeo, também segundo o texto, era "uma performance artística" concebida pela dupla "para ser representada, no Carnaval, para um público informado".
Elas foram filmadas no dia 4 de março durante o desfile do BloCU, um cortejo de Carnaval frequentado por grupos LGBT.
"Os dois artistas integram o Coletivo Ediy, que tem como tônica o questionamento de práticas sexuais na contemporaneidade, pautadas pelo hétero-cis-sexismo, por meio de ações com corpos e desejos desviantes", diz o texto. "A performance ocorrida no Carnaval e objeto da atenção presidencial leva o título de 'Pornoshow': nela, com a interação entre dança e erotismo, há o intuito de se fazer uma crítica à pornografia tradicional, estruturada simbolicamente a partir da misoginia e do machismo."
Eles ressaltam que "eventuais filmagens não eram inesperadas" e que os autores previam que as imagens circulassem.
"Mas a performance não foi feita para ser veiculada pelo chefe de Estado e Governo em instrumento oficial de comunicação do Estado brasileiro", prosseguem.
Para os advogados, a liberdade de opinião do presidente não o autorizaria a "ferir direitos alheiros" em canais oficiais do Estado brasileiro.
"O Presidente da República, como pessoa física, tem o direito de, na intimidade, reprovar a performance artística aqui em referência. Mas como agente de Estado, como chefe do Executivo, não lhe cabe infligir crítica pública infamante a uma performance artística lícita; e mais, inflar a população contra o Impetrante, como o fez com suas palavras", diz o texto.