Críticas ao governo federal se concentram desde a ala evangélica até ministros; para especialista, atitudes respingam na imagem do presidente
Com pouco mais de três meses na administração federal, o governo Jair Bolsonaro já coleciona episódios públicos do chamado "fogo amigo" - críticas contundentes de aliados que vêm colocando em xeque o comando e a governabilidade do presidente.
Um dos casos mais recentes envolve o escritor Olavo de Carvalho, considerado "guru" do bolsonarismo. Em evento nos Estados Unidos, no último sábado, 16, ele chamou o vice-presidente Hamilton Mourão de "idiota", por viajar a São Paulo para encontro com o governador João Doria enquanto assume o cargo de presidente interino.
Olavo tem criticado com frequência os militares do governo. No mesmo evento, ele afirmou que "aquele bando de milico que o cerca é tudo um bando de cagão, que tem medo da mídia", e reiterou que o presidente "não pode confiar nos que o cercam".
Apuração do Estado levantou que quase um terço das postagens de Olavo no Twitter são utilizadas para atacar o núcleo militar do governo, liderado por Mourão. Nas mensagens, o escritor alimenta a especulação de que o vice atua para derrubar o presidente, além de criticar declarações feitas pelo vice que, segundo ele, são contrárias às ideologias de governo.
O governo também tem sido cobrado pelos integrantes da ala evangélica de apoio. A última crítica veio do pastor Silas Malafaia, direcionada ao deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), um dos filhos do presidente. Rebatendo a fala de Eduardo, que classificou como "vergonha" os imigrantes ilegais brasileiros nos Estados Unidos, Malafaia escreveu em seu perfil no Twitter que Eduardo "ajudaria muito mais ao governo do seu pai, parando de falar asneira", além de defender brasileiros que se mudam para o exterior: são "trabalhadores que foram tentar a vida fugindo do desemprego".
Outro integrante da ala evangélica, o deputado federal Marcos Feliciano, fez críticas diretas aos filhos do presidente, tanto Eduardo quanto o vereador do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (PSC), presente ativamente nas questões do Planalto. "A comunicação está péssima. O ego daqueles que vocês elegeram está inflado (...) Ou vocês criam um grupo político e intelectualmente preparado ou todos os dias irão sangrar", escreveu Feliciano.
A ausência de comunicação citada pelo pastor se reflete na decisão da Bancada Evangélica da Câmara dos Deputados em futuramente publicar manifesto de independência ao governo. São poucos os cargos ocupados ou indicados por evangélicos na administração federal. Após a declaração de Feliciano, a ele foi oferecido a vice-liderança do governo na Câmara. Voz ativa na bancada, ele chegou a afirmar que "talvez o manifesto não seja necessário".
As críticas também atingem os ministérios. O ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, militar no governo, rebateu declaração de 2013 da ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves, pertencente à ala de costumes do governo. Ela criticou o ensino da Teoria da Evolução nas escolas, no qual Pontes afirmou, em janeiro, que "não se pode misturar ciência com religião".
A primeira exoneração de um dos ministros de Bolsonaro, Gustavo Bebianno, da Secretaria-Geral da Presidência da República, foi fruto de uma crise iniciada com uma acusação de Carlos Bolsonaro ao ministro, que o chamou de mentiroso após Bebianno afirmar que estava conversando com o presidente da República.
Deputada estadual eleita pelo PSL, Janaína Paschoal, cotada para assumir a vice-presidência de Bolsonaro durante a campanha eleitoral, também não tem evitado críticas ao governo. A primeira com maior repercussão é anterior à exoneração de Bebianno, no qual ela afirmou que a administração "não pode sair cortando cabeças". A segunda, mais contundente, é relacionada ao ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, após envio de e-mail à escolas orientando que alunos fossem filmados cantando o hino nacional. Na ocasião, Janaína classificou o caso como "surreal" e indicou que o ministro contratasse um assessor jurídico.
Para o cientista político Kléber Carrilho, da Universidade Metodista de São Paulo, as declarações de oposição pública ao governo por parte de aliados é relacionada com o "perfil de oposição" deles. "(Eles) Ganharam notoriedade nas redes, surgiram nas grandres crises recentes e portanto, têm grande dificuldade em ser governo. Consequentemente, tratam a própria imagem como mais importante do que o apoio ao governo", afirmou.
Carrilho avalia que o impacto é direto à imagem do presidente Jair Bolsonaro. "Enquanto ele tinha o perfil crítico, estava tudo certo. Agora como Presidente, as pessoas esperam e começam a cobrar dele uma postura condizente com o cargo. Ele precisa ser uma pessoa que consegue liderar. Quando vem o fogo amigo, isso começa a ficar complicado e gera dificuldades." A falta de controle sob os aliados é relacionada pelo fato de ser uma "base frágil", segundo o especialista. "Parece uma panela de pressão que sempre está prestes a explodir. Uma base frágil, sem experiência, sem sentido político nenhum. Uma base que você não tem controle nenhum sobre ela e que já causa dano ao governo."
Temer e Dilma passaram por processos semelhantes Apesar da base de apoio dos ex-presidentes Michel Temer (PMDB) e Dilma Rousseff (PT) não serem semelhantes à do atual governo, os governos recentes não estiveram isentos de crises internas iniciadas por aliados.
Temer e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), na época com o mesmo cargo, se desentenderam em diversas ocasiões, desde a aprovação de proposta para zerar a alíquota de PIS/Cofins sobre o diesel, durante a greve dos caminhoneiros, até a dificuldade de articulação para evitar que as denúncias contra Temer encaminhadas pelo Supremo Tribunal Federal, que poderiam resultar em impeachment, não fossem aprovadas na Câmara. O ex-presidente saiu bem sucedido após conseguir trazer políticos do PSB para o PMDB, o que irritou Maia, que também buscava mais aliados para o DEM.
Outra crise emblemática do governo Michel Temer foi a renúncia do então ministro da Cultura e atual deputado federal, Marcelo Calero (PPS-RJ). Ele pediu demissão após denunciar pressão do então ministro da Secretaria-geral de governo, Geddel Vieira Lima, para que Calero aprovasse a construção de um empreendimento em Salvador localizado em área histórica da cidade. Geddel havia comprado um dos apartamentos do edifício. Ele foi preso em setembro de 2017 após a descoberta de um bunker com R$ 51 mi em dinheiro em espécie.
Já no governo Dilma, a ex-presidente enfrentou crise do próprio vice, Temer. O vazamento "acidental" de um áudio anterior à sessão de votação do impeachment na Câmara, onde Temer discursa como se o processo já tivesse sido aprovado, foi o suficiente para que o Planalto definisse como o andamento de uma conspiração contra Dilma. Em delação de setembro de 2017, o corretor Lúcio Funaro disse que, na época, Temer e o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, tramavam "diariamente" a deposição de Dilma.
Às vésperas do impeachment, o líder do governo na Câmara, Leonardo Picciani (PMDB-RJ) também instaurou crise de articulação do governo na Casa, após o partido oficializar a saída do governo. Reconduzido ao cargo em fevereiro de 2016, o antes aliado da presidente foi o responsável pela instalação das comissões responsáveis pela aprovação da ida do pedido de impeachment ao plenário.