Elas se preparam mais para chegar ao poder e acumulam experiências, mas ainda enfrentam machismo e preconceito à frente da administração municipal
“Um candidato falou para mim: alguém tem que falar para essa mulher que o lugar dela é servindo café para as autoridades que chegam.” Essa foi apenas uma das demonstrações de machismo e preconceito que Daniela de Cassia Santos Brito, de 39 anos, ouviu quando decidiu disputar a eleição municipal da cidade de Monteiro Lobato, a 133 km de São Paulo.
“Ex-prefeitos já me disseram que, por ser mulher, seria mais fácil concorrer. Outros afirmaram que eu perderia por não ter dinheiro para bancar a campanha”, lembra ela, que, em 2012, se tornou a primeira mulher prefeita da cidade de 4,4 mil habitantes. Daniela conseguiu integrar a estatística de prefeitas que governam para apenas 7% da população - elas são 51% dos habitantes, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Metade das prefeitas dos municípios brasileiros já sofreu assédio ou violência política pelo simples fato de ser mulher. Três em cada dez sofreram assédio e violências simbólicas no espaço político. Duas em cada dez enfrentam situações de desmerecimento em relação ao trabalho ou às suas falas. O mesmo percentual (20%) também sofre com a sobrecarga de trabalho doméstico, dificultando a participação na política. É o que mostra uma pesquisa realizada pelo Instituto Alziras.
“O machismo é tão estruturante na sociedade que as possibilidades de inserção na política são muito difíceis”, afirma Masra de Abreu, socióloga do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, ONG que integra uma plataforma de Reforma do Sistema Político Brasileiro.
Obstáculos como esses são recorrentes na vida das 649 prefeitas eleitas em 2016 em todo o país. Além de enfrentar o preconceito cotidiano, essas mulheres lutam para combater situações sexistas ou misóginas. Na esfera política, o cenário não é diferente. A discriminação que enfrentam em outros lugares se estende nos ambientes de poder de forma escancarada. “Elas enfrentam uma dupla jornada que torna escasso o tempo para fazer política. E quando conseguem sair do âmbito doméstico, a estrutura é montada para impedir que ela se mantenha no poder”, diz a socióloga.
A pesquisa do Instituto Alziras, que mapeou a vida das prefeitas de todo o país, escolhidas para administrar os municípios até 2020, mostra que os ambientes políticos para as mulheres se revelam hostis mesmo em situações em que elas são mais preparadas do que os homens — na grande maioria dos casos. “Os partidos, em geral, trabalham para impedir que as mulheres tenham acesso aos cargos”, diz Masra. “Com a lei de cotas, as legendas dão um jeito de chegar às metas, mas são poucos os casos em que se dá oportunidade de uma disputa igual.”
Os números mostram que elas estão à frente das cidades pequenas e com PIB (Produto Interno Bruto) baixo. Governar uma cidade com até 50 mil habitantes é uma realidade para 91% das prefeitas eleitas em 2016 que, somadas, governam apenas 7% da população do país. Enquanto a média de PIB per capita dos municípios governados por prefeitas é de R$ 17,8 mil, as cidades governadas por homens têm uma média de R$ 19,7 mil.
De recepcionista a prefeita
Há sete anos à frente da administração municipal de Monteiro Lobato, cidade do interior de São Paulo, Daniela chegou à prefeitura atraída pelas políticas públicas de desenvolvimento social, mas não demorou a constatar que mulheres estão capacitadas para atuar em qualquer área. “Meu secretariado é composto 60% por mulheres. Elas estão, inclusive, em áreas tradicionalmente ocupadas por homens, como, por exemplo, o transporte."
Daniela teve os primeiros contatos com os habitantes ainda na adolescência. Participou de atividades em igrejas e associações de bairro e de artesanato. “Sempre trabalhei com o público e isso me motivou a entrar na política”, diz.
Aos 24 anos, ela começou a trabalhar como recepcionista e secretária da prefeitura da cidade. “Comecei a pegar gosto pelo executivo municipal porque é onde as coisas realmente acontecem”, afirma.
Tempos depois, se mudou para São Paulo, onde começou a fazer uma pós-graduação em gestão de políticas públicas. O desejo de Daniela era trabalhar no terceiro setor. Até que o então prefeito de Monteiro Lobato a convidou para se candidatar. Ela, em princípio, recusou o convite. Desempregada na capital, voltou à cidade e à prefeitura, desta vez, como como chefe de gabinete. “Ficava pensando: se fosse eu como prefeita, faria isso de outro jeito.” Até que, em abril de 2012, deixou o gabinete para se candidatar.
“Uma coisa é tomar a decisão, outra é fazer campanha”, conta Daniela. As dificuldades emergiram desde os primeiros momentos. Filha de pais comerciantes, foi a primeira da família a se arriscar em uma disputa eleitoral. “Quando ia para campanha na área rural, muitos homens não queriam conversar comigo, se dirigiam aos homens da equipe”, diz.
“Tive que perguntar se eles conheciam meu pai para ter um pouco mais de abertura. Isso porque eu fazia campanha de botina e calça jeans”, lembra. Dentro de casa, Daniela também enfrentou obstáculos. “Minha mãe tinha medo que eu não estivesse preparada, que sofresse, caso não ganhasse a eleição.”
Mais preparadas
Para chegar aos cargos administrativos, as mulheres se preparam, conquistam experiência em gestão pública e atingem mais anos de estudo do que os homens. Para se ter ideia, sete em cada dez prefeitas têm ensino superior. No caso dos prefeitos, cerca de 50% têm o mesmo nível de escolaridade. Mais do que isso: 42% delas têm pós-graduação. “Elas são muito bem capacitadas e os números mostram que não estão chegando na política sem experiência”, afirma Marina Barros, diretora do Instituto Alzira.
A experiência na vida pública das mulheres é vasta. A pesquisa mostrou também que 70% delas já ocuparam cargos públicos não eletivos ou de confiança, principalmente nas pastas de assistência social, educação e saúde. O estudo mostra que são mulheres com uma forte atuação política antes mesmo de serem eleitas: 88% delas estavam engajadas em conselhos, entidades de assistência social ou movimentos sociais.
Apesar de todo esse preparo e capacitação, elas governam apenas 7 em cada 100 prefeituras brasileiras. Quando estudo faz o recorte racial, o número é ainda mais impactante: mulheres negras são 27% da população, mas governam apenas 3% das prefeituras no Brasil. Essa baixa representatividade das mulheres na esfera municipal e na política institucional se deve, além dos fatores relacionados à cultura do machismo em espaços públicos, a dificuldades próprias da vida política.
Vida de resistência
Ao chegar aos cargos pretendidos, as dificuldades não se encerram. Pelo contrário, socióloga do Centro Feminista de Estudos e Assessoria afirma que muitas mulheres ficam mais “visibilizadas” à medida que persistem e denunciam. “As mulheres fazem política o tempo todo, no bairro, na comunidade, nas escolas e têm mais visibilidade para resolver questões de necessidade básica”, explica Masra.
No entanto, a partir do momento que entram no poder público, enfrentam uma estrutura política conservadora. “Com isso, elas ficam na linha de frente em municípios que são mais esquecidos e onde o paternalismo é preponderante. Trata-se de um sistema pensado para homens.”
O estudo mostra também que, quando chegam ao poder, as mulheres abrem espaço para outras. Entre as entrevistadas, 55% possuem um secretariado composto de, pelo menos, 40% de mulheres — como no caso de Daniela.
Segundo Masra, essa tendência é uma forma de romper a lógica do sistema político patriarcal. “São microrrevoluções que se consegue fazer. Elas chegam nos cargos com uma outra leitura de poder. E, depois de passarem por tudo isso, é natural que avancem em outras pautas.”
Em Monteiro Lobato, Daniela afirma que notou algumas mudanças no comportamento da população. “Muitas pessoas que antes me discriminavam passaram a me enxergar de forma diferente", afirma. "Quanto mais oportunidades e incentivo damos a outras mulheres, mais conseguimos conquistar nossos espaços”.