Projeto cria limites de mandatos de procuradores no comando de investigações de casos complexos, como os de corrupção; mais da metade dos procuradores do país assinaram manifesto contra.
O Ministério Público Federal pode decidir nesta sexta-feira (29) sobre um projeto que altera radicalmente a forma como a instituição investiga casos complexos, como os de corrupção. Apresentada pela chefe da instituição, a procuradora-geral da República Raquel Dodge, no começo de fevereiro, a proposta virou foco de insatisfação. Mais de 600 integrantes do MP assinaram um manifesto contra a ideia, e 257 em todo o país entregaram suas funções e interromperam atividades - algo nunca visto na instituição.
Questões salariais e disputas de poder também motivam a "rebelião" dos procuradores.
O projeto de Dodge cria estruturas chamadas "ofícios de atuação concentrada em polos", ou "ofícios especializados": são basicamente grupos de procuradores com mandatos de dois anos e foco em determinados temas. O país poderia ter, por exemplo, um "ofício de atuação concentrada" para investigar um caso importante de corrupção como a Lava Jato, por exemplo; um outro apenas para atuar em casos de barragens de rejeitos como as de Brumadinho e Mariana (MG); e assim por diante.
Mudanças como a dos "ofícios especializados" precisam ser aprovadas por um colegiado formado por dez procuradores, chamado Conselho Superior do Ministério Público (CSMPF), por meio de uma resolução.
Dodge apresentou o tema para votação no começo de fevereiro, no dia 08 de fevereiro - houve controvérsias e bate-boca, e a decisão acabou adiada. A relatora do projeto, a procuradora Maria Caetana Cintra Santos, abriu dias atrás um prazo para que procuradores pudessem propor mudanças no texto. O tema volta à pauta do Conselho nesta sexta junto com uma proposta alternativa, formulada pela associação dos procuradores, a ANPR.
Ao longo da reunião do dia 08, Dodge recebeu sinais de vários integrantes do Conselho de que votariam contra a proposta - inclusive a nº 2 do Ministério Público durante parte do mandato de Rodrigo Janot, Ela Wiecko. Dodge disse que estava com fome (eram por volta de 13h30) e encerrou a reunião. Nos dias seguintes, o clima ficou tenso no MPF - e a reportagem da BBC News Brasil apurou que Dodge chegou a cancelar uma viagem para a Inglaterra na semana seguinte à da reunião.
O que é o projeto?
Mas o que é exatamente o projeto de Dodge e por que ele causa tanta polêmica?
A criação dos "ofícios especializados" mexe em vários pontos sensíveis da organização do Ministério Público - principalmente a forma como os casos são distribuídos e a forma de trabalhar de cada procurador.
Hoje, as ações são sorteadas entre os procuradores de acordo com o Estado onde trabalham e o tipo do ofício do qual são titulares - meio ambiente, criminal, populações indígenas, etc. Quando um procurador se depara com um caso complexo ou de grande repercussão, ele pode pedir a criação de uma "força-tarefa": nesse caso, outros procuradores passam a dividir com ele o trabalho, mas ele continua sendo o titular, o "procurador natural" do processo.
Na Lava Jato do Paraná, esse posto é de Deltan Dallagnol. Na Operação Greenfield, o titular é o procurador Anselmo Lopes, de Brasília. Muitas vezes, os integrantes de uma força-tarefa acumulam as novas funções com seu trabalho normal, sem receber a mais.
Com os "ofícios especializados" de Dodge, os casos relativos a certos temas seriam distribuídos somente aos procuradores daquele grupo. Imagine que os procuradores do Estado de Pernambuco decidam criar dois ou três "ofícios especializados" para tratar de casos de corrupção. A partir daí, todas as investigações sobre desvios de verbas públicas naquele Estado passarão a ser feitos pelos procuradores destes grupos - os casos seriam distribuídos entre esses ofícios, e sorteados entre os procuradores que os integram.
Em alguns casos, esses novos "ofícios especializados" incluiriam mais de um Estado: se o projeto de Dodge passar, é possível que nos próximos anos procuradores de Minas, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas decidam criar um ofício relativo à bacia do rio São Francisco, por exemplo. A criação desses grupos seria decidida em conjunto com as Câmaras do MPF, grupos temáticos que funcionam na Procuradoria-Geral da República (PGR), em Brasília.
A princípio, as investigações já em andamento não deixariam as mãos de seus titulares atuais para os novos ofícios: Deltan Dallagnol continuaria como titular dos casos da Lava Jato, por exemplo, a menos que ele decidisse o contrário.
Os pontos que mais desagradaram os procuradores dizem respeito à forma como serão escolhidos os integrantes destes grupos, e a sua manutenção no cargo.
Hoje, os titulares dos ofícios são escolhidos de acordo com a antiguidade: quando uma vaga nova surge, é realizado um concurso, e entre os aprovados, é escolhido o mais antigo. E não pode ser removido por ninguém, a não ser que cometa uma falta e seja punido. Uma vez que o procurador receba um caso para investigar, ele também não pode ser afastado das investigações - e essa garantia é necessária para evitar a interferência de interesses poderosos.
No novo projeto, a escolha dos integrantes seria feita por critérios de "notória especialização", atuação anterior naquele tema, ou formação acadêmica na área - e não mais antiguidade. A escolha dos integrantes seria decidida pelos procuradores dos Estados, e aprovada depois pelas tais Câmaras da PGR - há seis delas, divididas por temas.
E, ao contrário do que acontece hoje, a permanência do procurador nesses "ofícios especializados" não seria mais vitalícia: teria duração de dois anos, a ser aprovada pelas Câmaras. Os responsáveis por esses ofícios teriam de mandar relatórios de suas atividades. E correm o risco de perder o controle de suas investigações caso a cúpula da PGR assim decida. Para os críticos do projeto, trata-se de uma forma do comando da instituição concentrar poder e controlar o trabalho dos demais procuradores - o que Raquel Dodge nega.
'Procuradores fantoches'?
A proposta é parecida - em alguns aspectos - com o que já existe na Justiça Federal. Antes de virar ministro da Justiça, Sérgio Moro era juiz de uma Vara da Justiça Federal especializada em lavagem de dinheiro - a 13ª de Curitiba, que continua sendo responsável pela Lava Jato no Paraná. No caso da Justiça, essas varas surgiram no começo dos anos 2000.
"Tem uma semelhança com a preocupação da dra. Raquel Dodge agora, de tentar dar respostas especializadas a determinados temas. Mas, uma vez criadas essas varas (na Justiça), como elas foram ocupadas? Por antiguidade. Os juízes se candidataram e o mais antigo passou a ocupar. E aí ele passou a ser permanente, inamovível (que não pode ser retirado do posto), com independência para agir. Na 13ª Vara, o titular foi o Sérgio Moro, até outro dia", explica o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti.
"A comparação que eu faço é a seguinte: imagine que o Conselho de Justiça Federal, ao invés de agir dessa forma, tivesse dito o seguinte: 'quero selecionar o juiz desta vara pelo período de dois anos. E a cada ano mandará relatórios para o Conselho. Ao fim de dois anos, vou decidir se esta vara vai continuar existindo, se eu vou indicar o dr. Moro de novo, ou se vou indicar outra pessoa. É isso que está no projeto", critica Robalinho.
"Você indicar um procurador, com um prazo definido de dois anos de atuação, e que ao final destes dois anos a cúpula da Casa vai avaliar a continuidade do seu trabalho… é algo que na visão da ANPR afeta a forma de trabalhar, a independência do procurador para agir", diz ele.
A independência para investigar também é a principal reclamação dos procuradores que assinaram o manifesto contra o projeto de Dodge. Segundo o procurador Mario Bonsaglia, que propôs o texto, foram 619 assinaturas em quatro dias - hoje, há 1.151 procuradores em atividade. Da força-tarefa da Lava Jato no Paraná, assinaram o texto Deltan Dallagnol e a procuradora Laura Tessler.
"Da maneira como redigida, a proposta, sob alegação de conferir maior eficiência e especialização à atuação do MPF, altera significativamente os critérios que disciplinam a distribuição de casos entre os Procuradores da República em todo o país", diz o texto.
"A radical e pouco debatida proposta concentra nas mãos da cúpula da instituição um enorme poder e pode vir a resultar, em algum momento, (...) na criação de mecanismos de ingerência, ainda que de forma indireta, sobre a atuação dos Procuradores (...). É preciso atenção para um projeto que, mesmo reflexamente, permitirá a existência de Procuradores da República 'biônicos', o que em nada interessa à sociedade brasileira", diz o texto.
Para Bonsaglia, a forma como a proposta de Dodge está redigida abre margem para interferências do procurador-geral da República de turno - o mandato, renovável, para o cargo é de dois anos.
O projeto "abre margem para ingerências das Câmaras, que são órgãos de cúpula. Os coordenadores das Câmaras são indicados pelo PGR. Os outros dois membros - as Câmaras têm três - são indicados pelo Conselho Superior", explica ele. "Agora veja, o procurador poderá ser reconduzido ou não. Ou seja, ele, mesmo que esteja trabalhando bem, pode não ser reconduzido", diz Bonsaglia.
Bonsaglia ressalta que não vê "má fé" na atuação de Raquel Dodge, mas diz que o projeto "abre brechas para violações".
Dodge defendeu seu projeto num memorando enviado aos chefes de todas as unidades do MPF no país. No texto, ela diz que seu projeto mantém sim a independência dos procuradores, pois o procedimento para a escolha dos titulares dos novos ofícios será parecido com o adotado hoje.
No memorando, a PGR minimiza a importância dos relatórios anuais. Estes seriam apenas uma forma de garantir a "transparência na atuação" da instituição, e também de "aferir a efetividade do modelo ora proposto", para fazer possíveis ajustes. No ofício, Dodge diz ainda que a existência de mandatos fixos de dois anos não compromete a independência dos procuradores - e lembra que outras funções no Ministério Público já funcionam desta forma, inclusive a de PGR e dos integrantes do Conselho.
Procurada pela reportagem, Dodge não quis se manifestar diretamente.
Penduricalhos salariais
Além do desejo de manter a independência para investigar crimes, há mais um ingrediente na rebelião dos procuradores: reivindicações salariais.
O projeto apresentado por Raquel Dodge é uma forma de responder a uma reivindicação do MPF que vem desde o fim de 2017 - a mudança nas regras para o pagamento de uma gratificação chamada "Geco", e recebida sempre que um procurador atua em mais de um ofício. Pela Constituição, procuradores e juízes federais devem ter o mesmo tratamento ao longo da carreira. No caso dos juízes, eles recebem uma parcela chamada "Gaju", ao qual têm direito sempre que atuam em mais de uma jurisdição.
Embora a reivindicação seja anterior, ela ganhou força no fim do ano passado, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux decidiu - mediante um aumento de salário para os ministros da Corte e demais juízes - acabar com o auxílio-moradia.
No fim de 2017, a associação nacional dos procuradores, a ANPR, concluiu que os juízes recebiam, em média, 15% a mais com a "Gaju" do que os procuradores com a "Geco" - e apresentaram um projeto para mudar as regras. Este projeto da ANPR, inclusive, está também na pauta da reunião do Conselho Superior do MPF desta sexta-feira (29).
A criação dos "ofícios especializados" de Dodge é uma alternativa ao projeto da ANPR. E, na visão dela, pode representar uma economia de dinheiro público.
"De um lado, problemas de grande impacto para o País estão a exigir celeridade e resolutividade, como apontado pela sociedade e pelos meios de comunicação. De outro, uma nova realidade orçamentária, introduzida em dezembro de 2016 pela Emenda Constitucional n. 95 (o chamado "teto de gastos"), dificulta a reposição total de membros e servidores, mesmo os já aprovados em concurso público", escreveu ela.
Na contramão do que diz Dodge, a ANPR afirma que os gastos seriam iguais nos dois projetos - e que, portanto, a rejeição à proposta da atual PGR não seria provocada "tão somente ou principalmente" por questões salariais.
De olho na sucessão de Dodge
Há um terceiro elemento complicador para Raquel Dodge: a sucessão dela, cujo primeiro mandato termina em setembro. Pelas regras do MPF, Dodge tem direito a disputar um novo período à frente da PGR, de mais dois anos.
Pela Constituição, quem escolhe o PGR é o presidente da República. E ele pode fazer isso de ofício, sem justificar sua decisão - basta que o Senado depois aprove o nome escolhido. Mas desde 2003, a escolha passa também por uma outra instância: uma espécie de eleição, entre os próprios procuradores. Eles elegem uma lista de três nomes (tríplice), numa votação organizada pela ANPR.
Jair Bolsonaro (PSL) não é obrigado a seguir esta lista, mas todos os seus antecessores desde Lula (PT) o fizeram - inclusive Michel Temer, quando escolheu Raquel Dodge para o posto em 2017. É esperado agora que Dodge tente sua recondução para o cargo.
Este ano, as inscrições para a disputa devem ser abertas em maio, e há alguns candidatos em potencial se movimentando. Mais de um procurador mencionou à BBC News Brasil os nomes de Vladimir Aras, Nicolao Dino, Guilherme Schelb e Mario Bonsaglia - embora nenhum dos três se declare candidato até agora. A votação propriamente dita está prevista para junho.
Autor do manifesto contra os "ofícios especializados", Bonsaglia diz que sua eventual participação na disputa só será decidida em maio.
"Só tomarei (a decisão sobre candidatar-se) no momento oportuno. Eu afasto esta alegação de caráter eleitoreiro no manifesto. Foi assinado por pessoas de correntes internas diversas, e pela maioria absoluta da classe. Não há qualquer intuito eleitoral no manifesto", diz ele.