Os dados, obtidos via Lei de Acesso à Informação, são referentes ao período de 2013 a 2017
Metade dos brasileiros (54%) que participaram do Mais Médicos não ficaram nem um ano e meio no programa. Os dados, obtidos via Lei de Acesso à Informação, são referentes ao período de 2013 a 2017.
A alta rotatividade dos profissionais preocupa especialistas, especialmente depois que Cuba anunciou a saída do programa. O governo de Havana não aceitou as condições impostas por Jair Bolsonaro (PSL), que incluíam revalidação do diploma e mudanças na forma de remuneração.
Para efeito de comparação, mais da metade dos cubanos ficava mais de dois anos e meio no Mais Médicos.
O entra e sai de médicos é mais expressivo em São Paulo e Mato Grosso, onde sete a cada dez participantes deixou o programa em até um ano e meio –em SP, 40% não ficaram nem 12 meses.
A maioria dos desistentes (58%) atuava em periferias de capitais e regiões metropolitanas e áreas consideradas de extrema pobreza. É justamente neste último grupo de municípios que estava fatia significativa dos cubanos (35%, contra 25% do Brasil).
Para evitar distorções, foram desconsiderados os profissionais que participaram da parceria do Mais Médicos com o Provab. O programa, extinto em 2016, dava bônus nos concursos de residência médica para aqueles que trabalhassem um ano na atenção básica. Também não foram contabilizados os brasileiros formados no exterior que não fizeram a prova de revalidação do diploma.
Segundo especialistas consultados, o perfil dos integrantes do Mais Médicos é de recém-formados, que querem trabalhar por um ou dois anos antes de começar a residência. Muitos deles se graduaram em instituições privadas e contrataram financiamentos para arcar com as mensalidades, em geral elevadas.
"Hoje temos uma legião de médicos que saem da faculdade com dívida muito alta. A preocupação deles é o pagamento da dívida, ou o abatimento. Então, depois de um ano e meio ganhando R$ 11 mil [valor aproximado da bolsa], eles vão embora", diz Mauro Ribeiro, presidente em exercício do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Outra hipótese a ser considerada são as condições de trabalho oferecidas em áreas mais afastadas e periferias de grandes cidades, onde a estrutura das unidades de saúde muitas vezes é precária.
"As dificuldades do local, da qualidade de vida, as condições de trabalho inadequadas certamente podem ser fatores. É um mercado com pleno emprego. O médico suporta durante um tempo, mas depois a pessoa sai, vai fazer residência", diz Mário Scheffer, professor da USP e autor do estudo Demografia Médica 2018, que traçou o perfil dos profissionais da medicina.
A alta rotatividade de médicos é considerada prejudicial em programas de atenção básica e saúde da família, em que o acompanhamento dos pacientes por longos períodos é fator importante.
"Não é o ideal, mas considerando a dificuldade histórica de fixar médicos no interior, que não é só do Brasil, [o governo] tem que trabalhar com essa característica [da rotatividade], pensar em como se garante a reposição [das vagas] e fazer com que a assistência seja adequada", diz Scheffer.
O "entra e sai" de médicos é ainda pior em municípios afastados e distritos de saúde indígena. Na UBS da terra indígena Massacará, em Euclides da Cunha (BA), os índios kaimbé lamentam a saída dos cubanos. A UBS está sem médico e não há previsão de substituição.
Segundo o cacique Edicarlos de Jesus, 46, antes dos cubanos os médicos não paravam no posto, que atende 1.175 índios, em sete aldeias. "Os brasileiros passavam uma temporada e saíam. Chegava a trocar três vezes por ano. E nisso a gente ficava meses sem nenhum médico", afirma Edicarlos, que é lavrador.
O médico cubano estava havia três anos no posto. "Ele conhecia todo mundo, essa é a qualidade do cubano. O brasileiro, quando a comunidade menos esperava, ia embora", conta.
O agente de saúde e presidente do conselho local, Narciso Gonçalvez, afirma que os médicos brasileiros, além de ficarem pouco tempo no cargo, faziam vários trabalhos ao mesmo tempo.
"Eles estavam aqui dois dias por semana. Nos outros, faziam plantão em cidades vizinhas. Faltavam, chegavam atrasados, sempre tinha um imprevisto. Já os cubanos estavam aqui direto."
Segundo o secretário de saúde de Euclides da Cunha, o enfermeiro Claudio Lima, esses postos são sempre os últimos a serem preenchidos.
"Quando a gente contrata pelo município a rotatividade é enorme, às vezes saem em três meses", diz. Ele se preocupa com os novos médicos do programa. "Até agora se apresentaram 7, dos 16. É a primeira vez que vamos ter brasileiro com CRM aqui. Eu receio que eles não fiquem muito tempo", afirma.
Em situação parecida, a cidade de Juruá (AM), a 24 horas de barco de Manaus, tinha até esta quinta-feira (29) três vagas abertas no programa –e nenhum médico interessado em ocupá-las.
Outros 26 municípios ainda não tinham perspectiva de preencher todas as vagas após uma semana das inscrições do novo edital do Mais Médicos, aberto na semana passada para preencher os postos vagos após a saída dos cubanos. "Todo médico que vem aqui só quer ficar por 15 dias ou com salários mais altos", relata a secretária de saúde de Juruá, Nádia Teixeira.
Levantamento feito pela Folha com base em lista do Ministério da Saúde mostra que, até às 18h desta quinta (29), todas as 151 vagas ainda disponíveis estavam em municípios de maior vulnerabilidade socioeconômica ou distritos sanitários indígenas.
A dificuldade no preenchimento desses postos, no entanto, contrasta com a alta adesão registrada. Das 8.517 vagas ofertadas, 8.366 já foram ocupadas, segundo o Ministério da Saúde.
Balanço do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, porém, aponta que essa adesão pode ter deixado ao menos outras 2.844 vagas abertas nas unidades de saúde. O número corresponde aos médicos que já atuavam no Programa Saúde da Família antes de se inscreverem para o Mais Médicos.
Outra preocupação dos secretários está nos relatos que vem sendo recebidos sobre possíveis desistências de inscritos. "Há uma falsa ideia de que a intenção manifesta nas vagas supostamente preenchidas vai se transformar imediatamente em médico presente em todos os lugares e que eles lá permanecerão. Quem acha isso tem total desconhecimento da realidade", diz Scheffer, da USP.
Segundo a professora da UnB (Universidade de Brasília) Leonor Pacheco, para mudar essa realidade é preciso investir nos programas de formação em saúde da família. Segundo ela, mais universidades têm focado a atenção básica, mas ainda é preciso melhorar. "As pessoas não podem achar que só é bacana ser cirurgião plástico. É bacana ser médico da família, é bacana estar na comunidade."
Em nota, o Ministério da Saúde diz que "está adotando todas as medidas para garantir a assistência dos brasileiros atendidos pelas equipes da Saúde da Família que contam com profissionais de Cuba".
Segundo a pasta, vagas não preenchidas devem ser direcionadas a um segundo edital, previsto para ser lançado após 14 de dezembro.
Sobre a alta rotatividade de profissionais, disse que são lançados editais periódicos para cobrir desistências e que é oferecida "remuneração diferenciada" aos participantes.