Em órgãos essenciais como INSS, Anvisa e Fiocruz, cerca de 30% do funcionalismo já pode se aposentar - e o quadro tende a piorar
Na gerência executiva do Instituto Nacional da Previdência Social (INSS) de São Paulo, localizado no centro da capital paulista, o cidadão pode sentir na pele as dificuldades vividas no dia-a-dia das repartições públicas. Esperas superiores a duas horas, contribuintes irritados com mesas vazias e muita desorganização. Os servidores que ali estão até tentam tratar os contribuintes, idosos em sua maioria, de forma digna. Mas a dificuldade em dar vazão a tanto trabalho impede a prestação adequada do serviço.
Órgãos essenciais como INSS, Anvisa, Ibama, universidades como a Federal do Rio de Janeiro (URFJ) e fundações como a Fiocruz sofrem há anos com as reduções dos quadros de funcionários e estão com um alto número de servidores aptos a se aposentar. Alguns desses órgãos têm mais de um terço de seus quadros nessas condições. Com a pressão que a Reforma da Previdência deve exercer sobre o funcionalismo, gestores afirmam que uma corrida rumo à aposentadoria já está acontecendo. Além disso, os pedidos de concursos públicos feitos ao Ministério do Planejamento estão sendo negados ou nem mesmo resposta recebem. A crise fiscal é o maior impulsionador deste quadro. De acordo com um porta-voz do Ministério, a restrição orçamentária impede novas contratações no curto prazo. A maior parte dos pedidos de concursos já foi negada e não há previsão de novo concurso federal.
De acordo com Ernesto Lozando, o presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), nos próximos 12 anos, metade do funcionalismo público estará apta a se aposentar. E o problema afeta não só os órgãos federais, mas os estaduais e os municipais também. “A maior parte dos servidores estaduais e municipais são professores. Até reciclar esse pessoal todo, como vai ficar a qualidade do serviço público?”, questiona Lozardo. Hoje, essa relação está em 17% no âmbito federal, mas chega a passar de 70% em alguns órgãos importantes.
O INSS, por exemplo, tem 34,3% de sua força de trabalho apta a se aposentar. São 11.369 servidores de um total de 33.133. O serviço, que segundo o próprio presidente da entidade, Edison Garcia, já é precário devido à falta de contingente, corre o risco de colapsar. O instituto responsável por receber e avaliar todos os pedidos de aposentadoria, salários-maternidade e pensões do país, tem de manter fechadas agências porque não tem funcionários suficientes. São 12 edifícios novos, limpos, modernos, mas fechados. E o pior: ele acredita que estes servidores não se aposentaram ainda porque só receberão o benefício baseado em sua remuneração integral a partir de 2019. As gratificações ficam fora do cálculo caso se aposentem antes da virada do ano.
“Na greve de 2015, houve a previsão de que a gratificação, que é 70% do que eles recebem, se incorpora ao salário em 1º de janeiro [de 2019]. Eles vão poder se aposentar com todo o vencimento. Os servidores não têm mais o estímulo para permanecer na ativa”, avalia Edison Garcia, presidente do INSS. Existem 1,27 milhão de processos de pedidos de benefícios pendentes de análise no INSS. Aproximadamente 63,5% deles estão com mais de 45 dias de atraso – transgredindo o prazo legal. O órgão fez um pedido ao Ministério do Planejamento por um concurso de 13.904 vagas. O pedido encontra-se em análise pelo Ministério.
Outras autarquias estão em situação semelhante ou até pior. A Anvisa, órgão responsável por analisar todos os medicamentos comercializados no país, tem 18,9% de seu quadro de 1.862 servidores aptos a se aposentarem. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), que cuida das estradas federais, tem 19,4% dos 2.949 funcionários na mesma situação. O caso mais grave encontrado foi o do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), que possui 119 anos e que tem 72,5% do total de 1.260 servidores prontos para se retirarem.
Defesa, saúde e pesquisas em risco
Na administração direta, situações alarmantes nos comandos da Aeronáutica, Exército e Marinha. Os índices nesses órgãos estão em 35,1%, 42,4% e 48%, respectivamente. No Ministério da Saúde trabalham 22.097 servidores, sendo 24,6% aptos a se aposentar. Indicador semelhante na estratégica Fundação Oswaldo Cruz, essencial nas pesquisas contra os vírus da zika e da dengue. Dos 5.238 funcionários, 24,6% podem pedir já a aposentaria. “Temos percebido que as aposentadorias têm aumentado em razão das notícias sobre a reforma da Previdência. Temos um programa de preparação para aposentadoria e observamos que as pessoas têm muita identificação com o trabalho na instituição, mas, por medo do que se anuncia sobre a reforma, querem adiantar sua aposentadoria”, diz a Fiocruz, em nota. Os pedidos de aposentadoria cresceram 83% no último ano.
Segundo a administração da fundação, o último concurso público feito foi em 2016 para 150 vagas. Até o momento, foram chamados apenas 31 servidores. “Estamos aguardando ainda a autorização para a chamada de 61 técnicos e 58 pesquisadores”, diz a nota. “O quadro atual de servidores não supre por completo suas necessidades. “O efeito de um apagão causado por um aumento de aposentadoria, pode trazer prejuízo nas atividades de pesquisa, ensino, produção de medicamentos e imunobiológicos, entre outros serviços.”
Outra fundação importante que sofre é o IBGE, que tem um grande projeto para realizar nos próximos anos, o Censo 2020. Porém, o órgão já informou que, sem pessoal, não terá condições de executar o levantamento. A pesquisa é a principal no país para estimar o tamanho da população e as suas características, como gênero, raça, renda, local de residência, composição familiar, entre outros aspectos. O Censo é importante para estabelecer políticas públicas e também baliza praticamente todos os investimentos privados. Até mesmo as pesquisas eleitorais utilizam esses dados para calcularem as projeções. O último foi realizado em 2010.
Segundo o Ministério do Planejamento, o IBGE conta com 10.272 funcionários. O número difere do que diz o próprio órgão, que contabiliza 5.030 servidores. Mas eles concordam em um outro número: mais de 1.500 servidores estão aptos a se aposentar. “Se parte das aposentadorias se realizarem, não é improvável que cheguemos a meados de 2019 com bem menos de 4.000 funcionários”. Nos últimos 10 anos, o IBGE perdeu 2.400 funcionários. Como consequência da falta de pessoal, 16 agências foram fechadas. Outras 61 funcionam com apenas um servidor.
O Ministério da Agricultura é um dos raros casos de órgãos que conseguiram realizar concursos recentes. Neste ano, foram chamados 300 fiscais agropecuários mediante um concurso realizado em 2017. A pasta pediu uma nomeação adicional de outros 150 auditores, mas que ainda não foi liberada. Este ministério é outro caso de alto índice de funcionários aptos a se aposentar. Cerca de 40,5% da força de trabalho encontra-se nesta situação.
Impacto fiscal
Hoje, pouco mais de 107 mil servidores em órgãos da administração direta, autarquias e fundações (o levantamento não considera as estatais) recebem abono permanência – uma gratificação adicional para não se aposentarem. Na ativa, estão 634 mil servidores. Os relatos da Fiocruz, do IBGE e do INSS mostram que isso não tem sido mais suficiente para mantê-los nos cargos. A corrida pela aposentadoria coloca o governo numa sinuca. Não há dinheiro para bancar novas contratações e, mesmo que estes servidores se aposentem, parte dos seus custos continuarão a pesar sobre as contas públicas.
Para cada servidor que recebe um salário de 10.000 reais, dos cofres públicos saem aproximadamente 15.000 reais mensais. No entanto, caso esse servidor se aposente com sua remuneração integral, cerca 5.400 reais continuarão a ser pagos pelo Tesouro via previdência. Ou seja, há cada vez menos espaço para a reposição de servidores.
O rombo do Regime Próprio de Previdência dos Servidores da União (RPPS) foi de 86,34 bilhões de reais em 2017, uma alta de 11,9% em relação ao ano anterior. Como comparação, o déficit do INSS, meio pelo qual os trabalhadores da iniciativa privada se aposentam, foi de 182,45 bilhões de reais no ano passado. Pouco mais do que o dobro do déficit do funcionalismo público.
A questão é que existem pouco mais de um milhão de servidores aposentados para 634 mil funcionários públicos na ativa. Conforme os servidores se aposentam e não há reposição, o rombo previdenciário aumenta mais rapidamente. “Espaço fiscal não existe para nada. O que o governo precisa fazer é adotar as soluções corretas para criar espaço fiscal, inclusive para contratar gente”, diz Raul Velloso, ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento. “Estão chorando porque vai demorar 10 anos para voltar a ter superávit, mas é preciso uma reforma profunda e rápida no sistema previdenciário do servidor público”, explica.
Sem a reforma, o governo precisaria empurrar com a barriga o problema. Para isso, basta que se amplie o abono permanência. Porém, o sucateamento continuará. “Entre contratar e gastar mais com paliativos, a segunda opção é sempre mais barata”, diz. “Para resolver a situação das pessoas aposentadas, é preciso criar um fundo com ativos e recebíveis, fora do orçamento. Faz-se a transferência das vidas do regime próprio para esse fundo. Não é mais possível dar soluções que não tenham um grande impacto.”
No final de Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, Manuel (Jesus) fala à sua mãe, Nossa Senhora, que acabara de salvar João Grilo de ir para o inferno: “Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar feito repartição pública, que existe, mas não funciona.” Em 1955, Suassuna já comparava o serviço público brasileiro às trevas. Mais de meio século depois, algum brasileiro dificilmente ficará sem entender a piada, que está ficando cada vez mais atual. Qualquer seja a solução que o governo encontre para esse problema, o fato é que o brasileiro não merece sofrer com um serviço público infernal.