Baixa imunização de bebês e crianças eleva risco de retorno de velhas doenças
Um em cada quatro municípios do país tem cobertura abaixo do ideal em todas as vacinas obrigatórias para bebês e crianças, situação que eleva a ameaça de retorno de velhas doenças e de surtos daquelas nunca eliminadas.
O levantamento foi feito pela Folha a partir de dados fornecidos pelo Programa Nacional de Imunizações, uma das principais estratégias de prevenção adotadas pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Em 2017, 1.453 das 5.570 cidades brasileiras não atingiram as metas de cobertura para nenhuma das dez vacinas indicadas para esse grupo.
Atualmente, essas metas são de 90% para vacinas que protegem contra tuberculose e gastroenterite e 95% para as demais —como as que protegem contra poliomielite, sarampo, hepatite e meningite.
O Ministério da Saúde considera que, abaixo desse patamar, há risco de retorno de doenças devido ao acúmulo de pessoas suscetíveis por não terem sido imunizadas.
Enquanto isso, na outra ponta, só 322 cidades atingiram a meta para todas essas vacinas —menos de 6% do total.
O levantamento indica que 94% dos municípios têm pelo menos uma vacina abaixo das metas preconizadas e que 63% têm pelo menos cinco com cobertura abaixo da ideal.
Os dados retratam o desafio gerado pela queda na vacinação de crianças, que já atinge os menores índices em mais de 16 anos, como mostrou a Folha há duas semanas. No caso das vacinas contra tuberculose, difteria, tétano, coqueluche e poliomielite, a cobertura já é a menor desde 1997.
O levantamento não considerou a vacina contra febre amarela, por ser recomendada apenas em parte do país.
O Pará tem 55% das cidades com todas as vacinas abaixo do ideal, maior proporção de baixa cobertura. Em São Paulo, 28% estão nessa situação.
Em um cenário de alto risco, quase metade dos municípios brasileiros tem ao menos uma vacina com cobertura abaixo de 50% entre as crianças.
Entre esses locais, 137 têm todas as dez vacinas com índices abaixo desse parâmetro.
Para José Cássio de Moraes, especialista em imunizações e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, os números preocupam. “Há doenças que convivemos e outras que podem voltar. O sarampo já ocupa dois estados e, com o fluxo de pessoas, pode se espalhar. A pólio está restrita a dois países (Afeganistão e Paquistão), mas, se tiver nova expansão, há risco. Não temos como prever”, afirma.
Atualmente, seis em cada dez municípios têm índices abaixo do ideal para pólio. No caso do sarampo, só metade das cidades atingiu a meta para a primeira dose da tríplice viral. Com isso, a cobertura em 2017, calculada pelo público-alvo, foi de 85%. Na segunda dose, esse índice cai para 71%. A última vez que o Brasil teve um índice como esse para a 1ª dose da tríplice foi em 2000.
Nesta quarta (4), a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro disse que investiga 17 casos suspeitos da doença, que já deixa surtos em Roraima e Amazonas, além de casos no Rio Grande do Sul. Nestes três estados, são 469 casos confirmados e 1.545 em investigação.
Para Moraes, além do impacto à saúde, há risco financeiro. “A vacina, comprada, corre o risco de ser perdida se a população não estiver utilizando.”
Segundo ele, que já coordenou estudos sobre a falta de adesão a vacinas, múltiplos fatores colaboram com a queda.
Entram na lista o aumento na oferta de vacinas nos últimos anos, o que demanda nove idas ao posto até os 15 meses do bebê; os horários restritos das salas de vacinação; o baixo temor em relação a algumas doenças e uma valorização excessiva do risco de eventos adversos. “Outro problema é: com a crise, será que os municípios estão tendo menos vacinadores ou reduzindo o horário de funcionamento?”, questiona.
Segundo Moraes, casos de desabastecimento de vacinas nos últimos anos, embora tenham causado transtornos, não seriam suficientes para explicar a baixa cobertura.
Mesma avaliação tem Helena Sato, diretora de imunizações em São Paulo, que atribui a queda na vacinação ao que chama de “mito do não vai acontecer aqui”. “As pessoas acham que não precisa vacinar porque a doença não circula. Mas para mantermos uma doença sem circular, só mantendo coberturas elevadas. É mito achar que por estarmos 18 anos sem sarampo vai continuar assim.”
Desde a última semana, a queda nas coberturas vacinais tem levado autoridades de saúde a intensificarem reuniões sobre o tema. Em Brasília, a situação fez representantes de secretários de Saúde estaduais, municipais e governo federal reativarem comitê técnico em busca de soluções.
Na Bahia, regionais planejam estratégias alternativas de vacinação, como reforço de ações de busca ativa. “A ideia é buscar não vacinados”, diz o coordenador estadual de imunizações, Ramon Saavedra.
Outra aposta é intensificar a campanha de vacinação contra pólio e sarampo, que ocorre de 6 a 31 agosto, como estratégia para reverter os baixos índices. “Queremos aproveitar esse momento para olharmos cada carteirinha e atualizarmos o esquema de vacinação”, afirma Sato, de SP.
PREVISTO DESDE 2012, SISTEMA PARA MAPEAR ATRASO EMPACA
Em meio à queda nos índices de adesão às vacinas, o Ministério da Saúde também tem feito um apelo a municípios para que implantem um sistema de registro nominal de vacinação, ferramenta que permite o controle de dados como nome e endereço da criança ou adulto imunizada.
Atualmente, esse tipo de sistema, embora tenha sido alvo de acordo em 2012 para implementação no país, só atinge 65% das salas de vacinação —o equivalente a 23.629 de um total de 36.082.
Com o atraso, boa parte do monitoramento ainda é feito apenas por registro de dose aplicada e idade.
O problema é que esse modelo não permite saber, por exemplo, se uma vacina aplicada em uma cidade imunizou uma criança que vive em outra ou se ela tomou apenas a primeira dose, deixando a segunda em atraso.
“Se não tivermos um sistema nominal, não temos como resgatar as 800 mil crianças que deixaram de serem vacinadas contra poliomielite [em outras doses]”, afirma a coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Carla Domingues.
“Ou enfrentamos essa questão do sistema nominal como ação de governo, para que possamos identificar nossas crianças, ou vamos ter recrudescimento de doenças no país”, disse ela a secretários de Saúde na quinta-feira (28).
Segundo Mauro Junqueira, presidente do Conasems (conselho de secretários municipais de Saúde), cidades que não aderiram ao sistema tem relatado problemas técnicos ou ausência de internet, o que explica a demora no envio de dados sobre a vacinação.
Além dessa baixa adesão ao registro nominal, há dificuldade em fazer a manutenção dos sistemas ser efetiva. “Há cota de responsabilidade do Ministério da Saúde em não dar conta da manutenção adequada ao sistema”, admitiu a coordenadora.
Ao menos dois municípios ouvidos pela Folha e que estão na lista de 137 com todos as vacinas abaixo de 50%, por exemplo, alegaram dificuldade na transferência de dados ao governo federal.
É o caso de Santo Antônio do Aracanguá (SP), um dos que apresentam os menores índices, e Florianópolis (SC). “Temos tido coberturas abaixo do recomendado, assim como no país todo, mas não nesse valor. Nossa cobertura fica entre 70% e 95%. Há problema de transferência de dados ao ministério”, diz a gerente de vigilância de Florianópolis, Ana Cristina Vidor.
Outra capital presente na lista, Natal (RN) admite a baixa cobertura e diz fazer mobilizações em busca de quem tem doses atrasadas.
Para a coordenadora do ministério, embora haja impasses no sistema, é baixo o número de cidades com esse tipo de dificuldade. O problema, assim, não é suficiente para explicar a queda nos índices nacionais.
Segundo ela, além de aprimorar o sistema para permitir a identificação de quem tem doses em atraso, o governo quer reforçar a profissionais de saúde a necessidade de obedecer a esquemas de vacinação simultânea —quando duas ou mais vacinas podem ser aplicadas juntas.
Para o especialista José Cássio de Moraes, o governo precisa investir também em comunicação. “Precisamos modernizar. Comunicação somente em campanha não é mais suficiente hoje para manter a população esclarecida.”