Apresentados entre 1969 e 1999, processos estão em variadas fases. Alguns, parados desde 2004
Segundo a Constituição Federal, a Justiça brasileira tem de ser rápida. Conforme estabelece o artigo 5º da Lei Maior, “a todos são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. No Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Carta Magna, no entanto, essa máxima nem sempre é seguida à risca. Atualmente, existem 260 processos aguardando desfecho na maior instância do Poder Judiciário desde o milênio passado.
Apresentadas ao Supremo entre 1969 e 1999, essas ações tratam de questões diversas e permanecem sem determinação final, mesmo tendo entre 18 e 59 anos de tramitação. Em 47 delas, nunca houve qualquer decisão proferida pelo ministro relator. Outras 46 aguardam julgamento de recursos, como embargos e agravos internos. Do total, 12 estão com julgamento marcado para este mês e, desde que não sejam retiradas da pauta, podem ter desfechos em breve.
Enquanto isso, pelo menos 140 processos seguem sem previsão de julgamento final, alguns parados desde 2004. Preteridas por feitos mais recentes, essas ações se empilham nos gabinetes de membros da Corte e deixam indefinidas questões que podem afetar milhares e até milhões de pessoas.
ADIs A grande maioria dos processos do milênio passado ainda em trâmite no STF é composta por Ações Diretas de Inconstitucionalidade, as ADIs. São 158 feitos do tipo, responsável por apontar descompasso entre leis federais e estaduais e a Constituição. Como podem terminar com a anulação ou manutenção de normas que regem a população, esses autos costumam ter impacto forte.
É o caso, por exemplo, da ADI nº 1.764, ajuizada pelo PT e PCdoB. Com julgamento marcado para 24 de maio, a ação pede a anulação da Lei Federal nº 9.601, de 1998, que criou os contratos de trabalho com tempo predeterminado. Sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, o processo tem relação com um outro membro da Corte: enquanto ainda advogava para o PT, o magistrado Dias Toffoli chegou a atuar no caso.
Boa parte das ADIs veio antes, principalmente entre 1989 e 1991, com a redemocratização e a promulgação das constituições estaduais pelo Brasil. À ocasião, houve um boom nesse tipo de ação por conta de divergências entre governadores e assembleias legislativas.
“Promulgadas as Cartas Constitucionais Estaduais, poucas não têm sido as ações diretas de inconstitucionalidade que vão povoar a Secretaria dessa Corte Excelsa, dada a pouca compreensão dos constituintes estaduais, os quais não entenderam sua limitada autonomia no desempenho do mister e desenvolvem uma soberania somente reconhecível ao Poder Constituinte Federal”, argumentou em 1989 o então governador de Alagoas, Moacir Lopes de Andrade, em ação contra trechos da lei estadual.
Joaquim Roriz São dezenas de processos questionando normas locais, como a ADI nº 158, movida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra lei do Ceará que derrubou o horário de verão no estado. Também tramita na Corte a ADI nº 1.164, ajuizada em 1994 pelo então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz.
O processo discute um trecho da Lei Orgânica do DF que proíbe a substituição de trabalhadores de empresas privadas por servidores. À época, conforme argumentou o político, o texto da lei veda também a atuação dos funcionários nas empresas estatais. Isso, segundo ele, agravaria uma possível situação de greve, por exemplo. O pedido de liminar foi indeferido e, desde 2004, o pleito está parado no gabinete do relator, ministro Celso de Mello. Desde o início da ação, Roriz deixou o governo, voltou por dois mandatos entre 1999 e 2006, e hoje se encontra fora da política, por problemas de saúde.
Existem ainda ações que tratam de temas como remuneração e concessão de benefícios a servidores, destinação de recursos públicos, competências de governadores e deputados, entre vários outros. Parte deles já teve pedidos de liminar julgados, enquanto outros até agora não foram apreciados. Todos, de uma forma ou outra, permanecem sem um desfecho no Supremo Tribunal Federal.
Recursos Extraordinários Em segundo lugar entre as peças dos anos 1900 que ainda tramitam no STF estão os Recursos Extraordinários (REs), com 53 casos. Essas ações são ajuizadas quando os autores apelam ao Supremo com o objetivo de impugnar sentenças proferidas em instâncias inferiores. É o último recurso possível para análise de mérito antes do trânsito em julgado do processo.
É o caso, por exemplo, do RE nº 136861, que chegou ao STF em 1991. O processo trata de um pedido de indenização movido por pessoas afetadas e familiares de vítimas da explosão em uma loja de fogos de artifício em São Paulo (SP), em 1985. Um dos autores do processo perdeu a esposa e os dois filhos na explosão. A tragédia terminou com cinco mortos, 20 feridos, seis casas danificadas e 14 carros destruídos.
Os autores do processo pedem reparação por parte da Prefeitura de São Paulo. Segundo eles, o governo local teria responsabilidade no acidente por conceder licença, mas não fiscalizar o comércio de fogos de artifício na região. Em primeira instância, o Tribunal de Justiça do estado concedeu o pedido de indenização de 1.109.776,40 cruzeiros, o que hoje soma pouco mais de R$ 40 mil. Em instâncias superiores, no entanto, a decisão foi revertida.
As vítimas, então, decidiram levar o caso ao STF. Em 2008, Joaquim Barbosa concedeu o pleito, em decisão monocrática. Já em 2011, a medida foi cassada porque os magistrados da Suprema Corte entenderam que o processo deveria ser julgado em Turma e não individualmente. No mesmo ano, também foi reconhecida repercussão geral da causa. Desde então, o processo está parado, hoje sob a relatoria do ministro Edson Fachin, 33 anos após o acidente.
Sopa de siglas Na lista aparecem ainda aparecem Ações Rescisórias (ARs), com 20 casos; Ações Cíveis Originárias (ACOs), com 13; Ações Originárias (AOs), com 7; e Mandados de Segurança (MSs), com 4. As ARs têm o objetivo de questionar decisões que já transitaram em julgado, enquanto as ACOs são exclusivas do STF e mediam conflitos entre a União e unidades federativas ou órgãos internacionais.
Já as Ações Originárias antigas ainda em tramitação discutem questões ligadas a benefícios de magistrados de tribunais regionais. Por fim, os mandados de segurança resguardam algum direito em risco, desde que não contemplado por habeas corpus ou habeas data. Um dos MSs aguardando desfecho, por exemplo, trata da possibilidade de adoção do parlamentarismo no Brasil por meio de emenda constitucional.
A ação foi apresentada pelo ex-governador da Bahia Jaques Wagner, enquanto era deputado federal, em 1997. O político solicitava liminar para impedir a possibilidade de apreciação, pelo Congresso Nacional, de um projeto de emenda constitucional, apresentado pelo também então deputado Eduardo Jorge, que instaurava o parlamentarismo no país. O pleito foi indeferido, mas o projeto não chegou a ser analisado e o processo segue parado desde 2016.
Ação mais antiga Já no grupo das ACOs está incluída a ação mais antiga ainda em tramitação no Supremo Tribunal Federal. Ajuizada em 1968, a Ação Cível Originária nº 158 completa 59 anos no próximo dia 15 de maio, ainda sem previsão de julgamento.
O processo, ajuizado pela União, trata de uma disputa de terras entre o governo e fazendeiros. A área, localizada no Mato Grosso, foi distribuída pelo estado de São Paulo a criadores da região. A União, por sua vez, pede a posse das terras de volta. Parte dos 22 réus já morreu e hoje são representados por seus herdeiros. Demorados processos de citação e cumprimento de mandados emperram a ação há anos.
Sob a relatoria da ministra Rosa Weber, a ação chegou a ser incluído na pauta da 1ª Turma do STF em janeiro deste ano. No entanto, não foi julgado e uma nova data ainda deverá ser marcada. A disputa de territórios entre vários estados do Brasil é, inclusive, o mote da maioria dos processos mais antigos ainda ativos no Supremo, principalmente os da década de 1980.
As ACOs nº 365 e nº 366, por exemplo, tratam de uma briga entre o governo de Mato Grosso, a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo o MT, terras pertencentes ao estado foram incluídas em áreas de reserva indígena. Por isso, pede indenização pela perda da região. Apresentados em 1987, os processos foram julgados pelo STF em fevereiro deste ano. A Corte negou o pleito do governo de Mato Grosso, mas o estado entrou com embargos e o processo continua sem trânsito em julgado.
Em último lugar, estão as petições, reclamações e os agravos de instrumento, que apareceram uma vez cada.
Tempo médio Os achados pela reportagem indicam que esses 260 processos ultrapassaram, e muito, o tempo médio de tramitação no STF. Segundo o levantamento Supremo em Números, realizado pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio), as ações diretas de inconstitucionalidade, por exemplo, levam em média 5,3 anos até o trânsito em julgado. A mais antiga ainda aguardando análise na Corte, no entanto, está prestes a completar 29 anos.
Já a média dos recursos extraordinários é de pouco mais de um ano de tramitação. No entanto, o mais antigo encontrado pela reportagem está ativo na Suprema Corte há 27 anos. Há ainda ACOs e AOs – que geralmente demoram menos de três anos até a baixa – em análise há 59 e 19 anos, respectivamente. De modo geral, todos os processos analisados pela reportagem, se tivessem seguido o prazo médio, já deveriam ter tido um desfecho há muito tempo.
Motivos e soluções Especialistas ouvidos pela reportagem divergem quanto aos motivos que levam à demora no julgamento de alguns processos e às soluções para o problema. De acordo com posicionamento do professor da Universidade de Brasília e especialista em direito constitucional Paulo Henrique Blair de Oliveira, a demora na análise das ações é influenciada por três fatores: a cultura da recorribilidade, o grande número de competências do STF e a falta de filtro da Corte na apreciação de recursos.
“Há uma falta de compreensão da natureza verdadeiramente extraordinária – o recurso para o STF”, afirma o docente. Conforme pontuou Oliveira, o Supremo brasileiro, diferentemente de outros países, gasta muito tempo fundamentando análises acerca de qualquer recurso apresentado a ele, mesmo que a decisão seja por nem apreciar seu mérito. Segundo o professor, isso gera ônus sobre os ministros. “Nós temos, na verdade, um sistema processual que gera um volume de trabalho específico em centenas de milhares de processos ao longo dos anos, sobrecarregando o tribunal”, explica.
Ainda de acordo com o especialista em direito constitucional, outro fator que contribui para a situação é a existência de ações penais com competência originária no STF, além da ampla aceitação de habeas corpus pelo Supremo. “Para julgar o mensalão, foi necessário paralisar o trabalho do plenário durante meses. Porque é humanamente impossível gastar sessões inteiras na análise do caso de um réu e ainda julgar ADI. Até hoje, o saldo acumulado daquele período não foi totalmente vencido”, pondera.
As ADIs ou ações de repercussão geral deveriam ser a prioridade absoluta do STF, mas como a Corte possui competências originárias e várias delas em âmbito penal, o andamento de outras ações fica prejudicado. Então, às vezes, para discutir um habeas corpus, o Supremo precisa parar discussões que envolvem, por exemplo, a constitucionalidade de um tributo que impacta milhões de pessoas no país"
Paulo Henrique Blair de Oliveira, especialista em direito constitucional
Segundo o docente, a solução em casos dessa natureza seria o estabelecimento de um filtro no sentido de o STF priorizar as ações que tenham caráter constitucional e afetem a população como um todo. “Enquanto a gente não entender que a Suprema Corte é excepcionalíssima, isso vai continuar ocorrendo”, finaliza.
Pensa diferente o professor da FGV Direito Rio Ivar Hartmann, um dos realizadores do estudo Supremo em Números. Para ele, o problema da demora processual é a falta de uma regra sobre a ordem de julgamento no STF. “Hoje, não tem nada que determine que um processo que chegou 20 anos depois precise ser julgado depois. O processo que chegou 20 anos depois pode ser julgado antes”, explica.
Conforme recorda o especialista, está previsto no regimento interno – e isso é a praxe do Supremo – priorizar processos com réu preso e habeas corpus. No entanto, Hartmann afirma que falta uma norma para organizar o julgamento de ADIs ou REs, por exemplo.
Segundo ainda acredita Ivar Hartmann, o elevado número de competências do Supremo não é responsável pela expressiva disparidade no prazo de julgamento entre determinadas ações. “Uma coisa é dizer que o STF demora a julgar processos, outra é abordar a grande diversidade entre o tempo de duração deles. Não é que todos estejam igualmente atrasados, mas um tramite por um ano e outro por 30. Para efeitos da heterogeneidade da duração, essa inflação dos tipos de competência do tribunal, para mim, é irrelevante”, finaliza.