A Corte executou, em 2017, R$ 495,8 milhões. Do orçamento da Justiça Militar da União em 2018, cerca de 95% dos recursos devem ir para o STM
Criada há 210 anos pelo monarca português dom João VI, a Justiça Militar da União (JMU) é o mais antigo braço do Judiciário brasileiro. Responsável por julgar crimes cometidos por militares e civis contra as Forças Armadas, trata-se do segmento mais especializado do sistema jurídico nacional e, em 2018, ano em que a segurança do Rio de Janeiro permanecerá sob o controle de oficiais do Exército, deverá pesar R$ 550 milhões no orçamento federal.
A JMU é composta pelas auditorias militares, que funcionam como primeira instância, e pelo Superior Tribunal Militar (STM), responsável pelo julgamento de recursos e apelações. Enquanto aquelas são formadas por quatro oficiais militares e um juiz federal, o STM possui 15 ministros, sendo cinco civis e 10 originários das Forças Armadas.
Do orçamento previsto para a JMU em 2018, cerca de 95% deverão ser destinados ao STM. No ano passado, a Corte executou, segundo dados do painel Siga Brasil, R$ 495,8 milhões. O gasto é próximo ao de outros tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) – que custou, no mesmo ano, R$ 621,4 milhões à União – e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – com R$ 675,5 milhões.
A comparação entre as medidas de produtividade das cortes, no entanto, revela números bastante distintos. Segundo os últimos dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2016, o índice de produtividade de magistrados do STM foi de 72, enquanto no STF a taxa foi de 7.816. A quantidade de novos casos no ano também é discrepante: 89.959 no Supremo, contra 843 na instância superior castrense.
O TSE, outro ramo especializado do Judiciário brasileiro, registrou em 2016 um índice de produtividade por magistrado de 391. O número de casos novos na Corte durante o mesmo ano foi de 4.250.
O comparativo entre o desempenho da Justiça Militar e de outros segmentos do Judiciário brasileiro em anos anteriores levou o então presidente do CNJ e do STF, ministro Joaquim Barbosa, a instalar em 2013 um grupo de trabalho para discutir o futuro dos tribunais castrenses. Barbosa referiu-se às cifras orçadas para a Justiça Militar federal e estadual como “escandalosas”.
Na época, levantamento do CNJ relativo ao ano de 2012 apontava que a despesa com recursos humanos por processo em tramitação da JMU era 108 vezes superior ao valor aferido na Justiça Federal e 46 vezes o montante constatado no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Reformulação O diagnóstico do CNJ divulgado em 2014 concluiu: a Justiça Militar deve continuar a existir. Sua estrutura e competências, contudo, conforme o relatório, deveriam ser modificadas. Entre as recomendações do órgão, estavam a ampliação de suas atribuições e questões relacionadas ao regime e à carreira militares, à diminuição de ministros no STM e à restrição ao julgamento de civis.
“A Justiça Militar precisa ser reformulada, mas a sua extinção não vai trazer benefício para o país”, defende o juiz-auditor da JMU e professor do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Jurídicas (CBEPJur), Claudio Amin. Para o magistrado, uma possível transferência de competências da análise de crimes militares para a Justiça Federal poderia tumultuar ainda mais a já assoberbada Justiça comum.
A Justiça Federal está lotada de processos. Não adianta extinguir uma porque ‘trabalha pouco’ e passar os processos para outras que já estão com muito trabalho. A celeridade é essencial para a Justiça Militar"
Claudio Amin, juiz-auditor da JMU
Pelo seu caráter especializado, o STM possui, por exemplo, a menor taxa de congestionamento entre os tribunais superiores, com apenas 20,2% de casos pendentes. Proporcionalmente, a Corte também registrou, em 2016, o maior índice de atendimento a demandas (127,9%). “Com o tempo, reduziram a competência [da JMU], mas existe a condição de produzirmos mais. Temos que aumentar a competência para justificar nossa existência”, afirma Amin.
Mudanças As mudanças na estrutura e competência da Justiça Militar estão inclusas na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de reforma do Judiciário. Em tramitação na Câmara dos Deputados, o projeto amplia as competências da JMU e reduz o número de ministros no STM de 15 para 11.
Em razão da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, a PEC teve sua tramitação suspensa no Congresso. De acordo com a legislação brasileira, em períodos de intervenção, a Constituição não pode ser alterada.
Uma outra matéria, de autoria do próprio STM, sugere o julgamento de civis, na primeira instância, pelo juiz federal de carreira. O projeto de lei aguarda votação no plenário da Câmara. Segundo levantamento realizado pelo Metrópoles, ao menos 68 civis foram alvo de processos em auditorias militares por situações de desacato ou desobediência durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Rio de Janeiro.
A competência, embora prevista no Código Penal Militar, é criticada pelos próprios integrantes da Justiça Militar. “O civil deveria ser julgado por um juiz-auditor [magistrado togado de carreira] monocraticamente, com recurso para uma turma do STM formada só por civis”, pontua o juiz-auditor da JMU, Claudio Amin.
Crimes contra a vida Enquanto os projetos não passam no Congresso, a ampliação de competência da Justiça Militar da União, recomendada em 2014 pelo grupo de trabalho do CNJ, tomou outra direção em outubro do ano passado. Um projeto de lei sancionado pelo presidente Michel Temer (MDB) transferiu para a JMU a atribuição para julgar crimes dolosos contra a vida praticados por militares quando em atividade operacional.
“O que se vê é uma tentativa de alargar a competência da Justiça Militar para julgar quaisquer crimes cometidos por militares. Se você pensar nesses crimes ligados ao sujeito e não à natureza do delito, você tem um tribunal de exceção”, critica o pesquisador Guilherme Pontes, da ONG Justiça Global. Para ele, a natureza híbrida dos tribunais compostos por civis e militares não garante a imparcialidade de julgamento.
Após o decreto de intervenção federal no RJ, a legislação foi questionada no STF pelo PSol. O partido entrou com ação na Corte criticando a competência da JMU. No processo, a legenda argumenta que a lei fere o princípio da igualdade e contraria normas internacionais de direitos humanos.