Auditorias constatam que desconfiança em relação a canais de denúncias chega a quase 70%. Estatais dizem incentivar denúncias de condutas irregulares e afirmam que sistemas protegem denunciantes.
Ao longo dos últimos três anos, funcionários de estatais têm relatado uma mesma situação à Controladoria-Geral da União (CGU): o medo de denunciar.
Auditorias da órgão indicam que, desde 2015, empregados de empresas públicas dizem não confiar nos canais das empresas para denunciar desvios de conduta, em geral por receio de sofrer retaliações.
Algumas das empresas já auditadas estão ou estiveram envolvidas em escândalos de corrupção. É o caso dos Correios, onde surgiu a denúncia que daria origem ao mensalão, em 2005, e também da Eletrobras e da Caixa, alvos de etapas da Operação Lava Jato.
Devido a mudanças nas leis que afetam as empresas, como a chamada Lei das Estatais, de 2016, a CGU estabeleceu um programa de auditoria da estrutura de integridade das empresas públicas.
Os auditores analisam elementos como padrões de conduta e ética das empresas, comprometimento da direção com programas de prevenção a fraudes, análise de riscos e o funcionamento dos canais internos de denúncias.
Nesse último ponto, o procedimento padrão é realizar questionários com empregados para saber quanto conhecem dos canais e quanto confiam neles.
Os resultados mostram a insegurança em relação a essa ferramenta. De 28 empresas auditadas desde 2015, 25 tiveram os dados relativos a esse tema divulgados.
Desconfiança
Nos Correios, auditados em 2015, "66% se sentiriam inseguros para realizar a denúncia por temerem sofrer retaliações e 36% entendem, em diferentes graus de percepção, que a entidade estabelece medidas específicas para prevenir a retaliação aos denunciantes", segundo relatório de auditoria da CGU.
À época, a empresa admitiu não ter um sistema que centralizasse as denúncias nem medidas específicas para prevenir a retaliação a denunciantes.
Procurada, a assessoria dos Correios disse que, após a auditoria da CGU, a empresa implantou um canal único de denúncias e, no ano passado, aprovou uma política de proteção a denunciantes e aguarda aprovação pelos órgãos colegiados de sanções aos que retaliarem denunciantes.
Na Caixa Econômica Federal, que passou pela auditoria em 2016, 45,73% dos funcionários ouvidos pela CGU "manifestaram se sentirem inseguros para realizarem a denúncia, por receio de sofrer retaliação".
Em nota, a empresa disse que "todas as denúncias são devidamente apuradas e encaminhadas" e que "incentiva, por meio dos canais exclusivos, que seus empregados denunciem qualquer outra prática que coloque em risco as normas internas ou imagens da instituição".
O menor percentual de desconfiança verificado até agora foi na auditoria realizada em 2016 na Eletrobras.
Diante da pergunta "caso você tivesse conhecimento de possíveis violações às normas da empresa ligadas a ética e integridade, você denunciaria?", 39% dos empregados ouvidos na empresa responderam: "Não, pois acredito que poderia sofrer retaliação".
Perguntados se acreditavam que a empresa estabelece medidas para prevenir retaliação a denunciantes, 38% dos empregados ouvidos disseram que não.
O próprio relatório informa que a Eletrobras destacou a realização de um projeto para a melhoria da gestão e tratamento das denúncias, o que incluiria a contratação de um canal de denúncias independente.
Resultado previsto
"Em termos de, pelo menos internamente, os funcionários conhecerem os canais de denúncia e os meios de acessá-los, em geral eles conheciam. Não era ali o problema", explica o diretor de Auditoria de Estatais da CGU, João Carlos Figueiredo.
"O que a gente percebeu é que eles não tinham muita confiança de que seria efetivo: se trouxessem uma denúncia real, se ela seria adequadamente investigada e, sim, o medo de retaliação era também elevado, de mediano para alto", completa.
Figueiredo afirma que o resultado era de certa maneira esperado porque mesmo as ouvidorias que já existiam nas empresas eram muito ineficientes, e isso afetava a percepção dos empregados.
"Os empregados percebiam que havia uma cultura de não investigação no passado. Mudar essa chave não é algo muito automático mesmo", avalia o diretor.
Ele explica que as auditorias já realizadas foram mais educativas, com o objetivo de melhorar essas áreas, mas que a expectativa por resultados vai aumentar.
"Essas empresas elaboraram planos de ação, e a partir de 2018 a gente já tem expectativa de cobrar esses planos. Começa a mudar o viés, vai haver uma cobrança maior", diz o auditor.
"Eu já percebo que há uma mudança, ainda que lenta, mas contínua no sentido de ter uma mudança cultural para que de fato este instrumento funcione."
Preocupação
Professor da Universidade de Brasília e especialista em governança pública, José Matias-Pereira considerou os dados "muito preocupantes".
Para ele, a questão passa pela diferença entre empresas estatais e empresas privadas, relacionada à interferência política.
"Quando nós temos uma empresa que funciona dentro de padrões normais, com estruturas para evitar desvios, o sistema de governança funciona dentro de um cenário de normalidade, a empresa funciona bem e há possibilidade desta empresa avançar e ir ocupando mais espaço no mercado, cumprindo bem o seu papel", disse o professor.
"Agora, quando você tem uma empresa com um cenário de dirigentes indicados por partidos políticos que não estão ali para fazer a empresa prosperar, mas para captar recursos para partidos e para eles próprios, quando você tem um cenário em que a questão ética está permeando todos os sistemas da empresa, isso é muito danoso", analisa ele.