Apenas 25% das operações contra trabalho escravo identificam crime
Entre as ações de fiscalização de combate ao trabalho análogo à escravidão neste ano, 25% resultaram em resgate de vítimas. Visto pelo inverso, 75% das diligências não identificaram o crime.
O dado é do Ministério do Trabalho, a mesma pasta que editou uma portaria para flexibilizar o conceito e o modelo de fiscalização desse tipo de crime, sob a alegação de que haveria excessos.
A portaria foi suspensa provisoriamente por liminar do Supremo Tribunal Federal.
Insegurança jurídica provocada por uma alta margem de interpretação dos auditores foi um dos argumentos usados por Ronaldo Nogueira, ministro do Trabalho, para defender a necessidade de cercear a ação do fiscalizador.
O presidente Michel Temer chegou a afirmar em entrevista que "se não tiver saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo".
De domingo (29) a terça-feira (31), a Folha acompanhou uma força-tarefa para fiscalização de trabalho escravo no Sul da Bahia. A operação, formada por profissionais do MPT (Ministério Público do Trabalho), da secretaria de Justiça do Estado, da Polícia Rodoviária Federal e do Ministério do Trabalho, abordou quatro fazendas.
Em duas delas, a Usina Santa Maria, no município de Medeiros Neto, e a Agro Unione, de Ibirapuã, que produzem cana de açúcar sem colheita mecanizada, o MPT viu irregularidades em instalações sanitárias, higiene de refeições, na jornada de trabalho e na gestão de saúde e segurança. Procuradas, as empresas não deram entrevista.
A reportagem observou situações precárias, como a da trabalhadora Lucimar Santos, 38, que dividia a marmita trazida de casa com o colega cujo almoço havia estragado sob o sol pela manhã.
Ela fazia parte do grupo dos bituqueiros na usina, os responsáveis por recolher restos de cana que sobram no campo após o corte. Diferentemente dos cortadores de cana, aos bituqueiros não são fornecidos alimentos.
Sem espaço na sombra da tenda disponibilizada pela empresa, alguns almoçavam entre as folhas do canavial.
A refeição dada aos cortadores trazia arroz, feijão e macarrão, além de uns poucos pedaços de carne, considerados insuficientes pelos trabalhadores -mas não estão autorizados a repetir a porção.
Maria da Conceição Santos, 50, conta que ela e as colegas urinam no chão porque o banheiro fica longe.
Dores nas costas e calos nas mãos são relatos comuns dos que cumprem uma jornada que começa às 6h e pode se estender até as 18h.
Quando os cortadores esticam os braços acima do corpo, uma diferença de quase um centímetro de tamanho entre os membros revela quem são destros ou canhotos, conforme o braço mais usado ao longo dos anos.
Por mais indigno que pareça, nenhum dos casos configurou trabalho análogo a escravo ou degradante pelos padrões da lei vigente, sem os efeitos da portaria.
água potável
Ilan Fonseca, procurador que atuou na operação, diz que só há resgate quando as situações degradantes são "radicais" a ponto de faltar colchão e condições térmicas adequadas para dormir, água potável, energia ou expor as vítimas a agrotóxico sem máscaras, por exemplo.
O crime também pode ser caracterizado quando a fiscalização encontra segurança armada nos estabelecimentos ou alguma estratégia para endividar os trabalhadores -artifícios usados para inibir a locomoção.
"É uma realidade que sensibiliza porque o corte da cana é pesado, são toneladas. Mas não caracteriza trabalho escravo ou degradante. Para que isso ocorresse, teria que ser ainda pior", diz Fonseca.
Nos casos que não chegam ao extremo de trabalho escravo, o procedimento padrão, explica o procurador, é dar multa para cada irregularidade ou firmar um TAC (Termo de Ajuste de Conduta). Casos mais drásticos também podem ser resolvidos com embargos de obras ou interdição das operações, antes de se optar pelo resgate dos trabalhadores.
SABONETEIRA
Detalhes como a saboneteira citada por Temer, são considerados simples irregularidades, mas precisam ser relatados em uma auditoria.
"Quando o auditor vai fiscalizar, ele tem que olhar toda e qualquer irregularidade. Se ele se deparar com uma saboneteira em altura errada, tem obrigação de emitir um auto de infração. Se não fizer, ele está prevaricando", diz Antônio Carlos de Mello, coordenador do programa de combate ao trabalho forçado da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
"Não quer dizer que saboneteira ou distância entre camas, mesmo que tudo isso apareça junto, será trabalho escravo. O critério é conservador", diz Mello.
A saboneteira citada por Temer foi parte da fiscalização de uma construtora em 2011, com 44 autos de infração pelas condições degradantes dos operários, incluindo falta de colchão, água, retenção de carteira de trabalho e atraso de salários.
Para Lidiane Barros, fiscal que atuou na operação desta semana e presidente do sindicato de auditores da Bahia, a portaria pode anular o combate a esse crime no país.
"Se a portaria vier, ela vai acabar com o entendimento de que até mesmo as situações extremas são indignas, porque ela ataca exatamente os dois pontos que mais geram resgate de trabalhadores no país, que são degradância e jornada exaustiva", diz ela.
Além da pressão política, a categoria tem gargalos financeiros, diz Matheus Magalhães, do Instituto de Estudos Sócio Econômicos, que divulgou uma pesquisa sobre a carência de mão de obra e recursos na auditoria.
"De 2010 a 2016, caiu pela metade os recursos para esse tipo de fiscalização", diz ele.
Sem acesso a tecnologias de GPS avançadas e investimento aprofundado em investigação anterior, a força tarefa desta semana enfrentou dificuldades.
O comboio da polícia e do Estado rodou por estradas de terra pedindo informações a habitantes locais sobre as coordenadas das propriedades que pretendiam inspecionar.
Um dos estabelecimentos visados pela operação já havia encerrado as atividades.
Violência é outra frente que tenta limitar a ação fiscal. A chacina de Unaí(MG), que em 2004 matou três auditores e um motorista, é uma memória recorrente na fala da fiscal Lidiane Barros.
"A gente entra em lugares de difícil acesso, que precisam do acompanhamento policial. Mas a polícia também carece de pessoal e condições", afirma Barros.
LISTA SUJA
O Estado que concentra a maior quantidade de empregadores na "lista suja", cadastro dos envolvidos em crimes de trabalho escravo no país, é Minas Gerais, com cerca de 32% dos nomes.
O ranking foi divulgado na semana passada após a polêmica provocada pela edição da portaria. A lista, que aponta 131 empregadores que submeteram mais de 2.000 trabalhadores a condições análogas à de escravo, coloca o Pará em segundo lugar (12%).
Na divisão por setores, são propriedades rurais e o agronegócio os principais, com quase 80% de presença
A dificuldade de acesso favorece a exploração em zonas rurais, onde os trabalhadores migram em busca de empregos temporários, com a duração de uma safra.
Tal fluxo de trabalhadores, em sua maioria de baixa escolaridade, perpetua a exploração, segundo Admar Junior, coordenador do núcleo de enfrentamento ao tráfico de pessoas do Estado da Bahia.
"Eles não têm perspectiva. Relatam que sonham ser tratoristas ou veterinários, mas consideram inatingível", diz Junior, que define o perfil médio das vítimas como homens entre 22 e 58 anos, sem ensino fundamental completo.
Segundo Junior, no fim da safra, retornam para suas casas e esperam encontrar uma nova vaga no ano seguinte.
"Quando as empresas mandam um ônibus busca-los em cidades distantes, a chance de irregularidade é menor. Mas em alguns casos existe o 'gato', aliciador que cobra uma parcela dos trabalhadores, o que pode levar a escravidão por dívida."
É raro ver homens com mais de 60 anos nas lavouras. Problemas pulmonares causados pela fuligem que resulta da queima da palha da cana, anterior ao corte, abreviam o tempo de atividade.
Para a auditora Lidiane Barros, o caráter temporário dos contratos destes migrantes rurais desprotege a gestão da saúde dos trabalhadores.
"A atividade da cana é extremamente insalubre e adoecedora. Quando os contratos temporários terminam, eles se distanciam da empresa. Na safra seguinte, voltam com um novo vínculo, quando na verdade deveria ser o mesmo", afirma Barros.
A reforma trabalhista, que entra em vigor no dia 11, regulamentando o trabalho intermitente, deve reduzir esse tipo de questionamento feito aos empregadores.
OUTRO LADO
O Ministério do Trabalho não quis se manifestar sobre os critérios da argumentação do ministro Ronaldo Nogueira em defesa da portaria que limita a fiscalização do trabalho escravo.
Por meio de nota que já havia sido publicada no dia 24, na ocasião em que a liminar do STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu a portaria, o ministério diz que o texto tramitou na consultoria jurídica do órgão "e sua legalidade foi subscrita por advogado público de carreira".
O órgão diz que vai aprimorar "ações de combate ao trabalho escravo no país a fim de livrar trabalhadores dessa condição aviltante".
As empresas fiscalizadas pela ação desta semana na Bahia não quiseram dar entrevista. Segundo o Ministério Público do Trabalho, as irregularidades verificadas devem gerar cerca de 15 autos de infração para cada empresa, sem configurar trabalho escravo. Os documentos ainda estão sendo avaliados.
O caso das bituqueiras que relataram distância do banheiro e as ruins condições da alimentação foram encontrados na Agro Unione.
ENTENDA A PORTARIA
O que é? Foi criada para alterar definição de trabalho escravo, critérios de autuação e forma de divulgação da "lista suja", com nome dos envolvidos no crime. Editada pelo Ministério do Trabalho no último dia 16 e suspensa por liminar da ministra Rosa Weber (STF) no dia 24
Qual é o efeito? Texto limita conceito de trabalho escravo, exigindo que haja "restrição à liberdade de locomoção da vítima" para a ação ser enquadrada
O que houve? Medida recebeu criticas da Organização das Nações Unidas, da procuradora-geral da República e outros; Michel Temer admitiu que poderia mudar portaria