Com o apoio de empresários, cerca de 800 mil jovens imigrantes ilegais, conhecidos como “sonhadores”, enfrentam a ira do presidente Trump
Era noite na fronteira do México com os Estados Unidos. Aos 5 anos, a menina Vania Rojas mal conseguia entender por que ingressara de repente numa van lotada. Para ficar calma, ela estendeu a mão para sua mãe e obedeceu às suas ordens, mantendo-se quieta no esguio espaço debaixo de um dos assentos. A jornada terminou no Arizona, mas a viagem só acabaria em Minnesota, ao encontro de seu pai, um ano após ele ter saído em busca de uma vida melhor. O menino Jaime Ramos não teve a mesma sorte. Uma tentativa de chegar ao outro lado, a pé, anos depois, foi interrompida depois que sua mãe desmaiou no caminho.
Na fronteira, onde “comemorou” o aniversário de nove anos, ele dedicou-se a decorar o nome que teria nos documentos falsificados pelos Coiotes contratados pelo pai, a um custo aproximado de US$ 2.500, que dobrou após o incidente com a mãe. Jaime atravessou a divisa no porta-malas de uma desconhecida, agarrando o seu inseparável game-boy. E, com a ajuda dos Coiotes, chegou à Califórnia, de onde voou para Minnesota. Vania, hoje com 25 anos, e Jaime, atualmente com 22 anos, casaram-se nos arredores de Minneapolis, em Minnesota, há três anos. Ela adotou o sobrenome do marido.
No papel, ambos são mexicanos, mas depois de quase 20 anos na região, sentem-se tão cidadãos americanos como o filho de um ano, nascido nos Estados Unidos. As memórias da travessia são dos anos 2000, uma das poucas recordações que guardam da terra natal. O casal integra o grupo dos chamados “dreamers” (sonhadores, em português), jovens que imigraram ilegalmente aos Estados Unidos antes dos 16 anos, seguindo os pais, e que receberam o direito de ingressar no mercado legal de trabalho graças a uma autorização concedida pelo presidente democrata Barack Obama, em 2012. O sonho passou a pesadelo com a eleição do republicano Donald Trump.
Na terça-feira 5, Trump decidiu seguir adiante com a promessa de acabar com o programa, colocando em risco cerca de 800 mil jovens beneficiários do DACA, sigla em inglês do nome oficial da iniciativa. Entre eles, 7.361 brasileiros, o sexto país na lista dos pedidos aprovados pelo governo (leia quadro ao final da reportagem). A decisão colocou o governo Trump mais uma vez em pé de guerra com o mundo corporativo. Cerca de 400 empresas assinaram uma carta ao presidente reforçando a importância do DACA. Em diferentes setores, CEOs enxergam os “sonhadores” como uma valiosa fonte de mão de obra, altamente qualificada, sem distinção entre americanos nascidos nos Estados Unidos, e necessária para a operação de seus negócios.
“Todos os beneficiários cresceram na América, foram registrados pelo governo e passaram por uma extensa bateria de checagens”, afirmou Hubert Joly, presidente da gigante varejista de eletrônicos Best Buy, que possui 1,5 mil lojas e faturamento anual de US$ 40 bilhões. “Eles estão diligentemente retribuindo a nossa comunidade e pagando impostos em dia.” A visão de Joly pode ser percebida no dia-a-dia da empresa. A varejista contratou Jaime Ramos e vem contribuindo para que ele construa uma carreira. Recém-promovido ao posto de coordenador do centro de distribuição da área de Minneapolis, o mexicano já foi convocado para dar treinamento a um grupo de Nova York. “Os meus supervisores fazem questão que eu tenha as ferramentas necessárias para crescer”, afirma. “Eles têm um plano para mim.”
Pelo cargo de coordenador, Jaime recebe hoje US$ 20,50 a hora, quase o triplo do valor que ganhava quando trabalhava sem documento no McDonald’s, aos 16 anos. O jovem é o único entre os quatro irmãos que não nasceu nos Estados Unidos. A renda de Jaime se soma hoje aos US$ 2.500 que Vania Ramos ganha como vendedora de carros da marca Lincoln, onde ela usa sua habilidade bilíngue para atender à clientela que só fala espanhol. “O programa mudou nossa vida e agora queremos dar uma vida melhor ao nosso filho”, afirma Vania. “Não vamos roubar os empregos dos americanos.” Assim como o marido, ela trabalhou sem documento no McDonald’s e calcula que ganhava cerca de US$ 1.500 por mês.
Com empregos melhores, o casal conseguiu adquirir um carro novo e planeja comprar uma casa. Um estudo coordenado por entidades de defesa dos imigrantes mostrou que 42% dos “sonhadores” passaram a ganhar mais depois de ingressar no programa. Cerca de 20% disseram ter comprado um carro e 12%, uma casa. “As empresas precisam entender, se já não entendem, que há quase um milhão de pessoas no mercado de trabalho que já receberam investimentos do governo americano, do jardim de infância até o final do ensino médio”, afirmou Keller, afirma John Keller, presidente do Centro Legal de Imigração em Minnesota.
Cálculos apresentados pela coalizão de empresas em favor dos “sonhadores” estimam uma perda aproximada de US$ 460 bilhões para a economia americana caso o programa seja definitivamente encerrado. O custo para repor esses trabalhadores no curto prazo também é alto, de US$ 6,3 bilhões, segundo a Cato, uma instituição liberal independente. Pouco mais de 70% das 25 empresas líderes do ranking das 500 maiores empresas americanas contam com “sonhadores” no quadro de funcionários. Na Microsoft, são ao menos 27. Na Apple, 250. “Eles merecem o nosso respeito como cidadãos iguais e uma solução calcada nos valores americanos”, afirmou o presidente da Apple, Tim Cook, pelo Twitter.
Direitos iguais: o historiador sul-coreano Jungrae Jang, de 27 anos, protesta em frente à Casa Branca (Crédito:Divulgação)
O grupo das empresas de tecnologia é o que exerce a maior pressão contra a Casa Branca, assim como no caso da restrição de vistos criada pelo presidente Trump a um conjunto de países de maioria islâmica, no início do ano. Algumas companhias, inclusive, são comandadas por estrangeiros. Google e Microsoft são dirigidas por dois indianos, Sundar Pichai e Satya Nadella, respectivamente. O novo CEO do Uber, Dara Khosrowshahi, é oriundo do Irã, e o fundador do Whatsapp, Jan Koum, chegou da Ucrânia aos Estados Unidos com 17 anos.
Embora muitas das empresas tenham a imigração no seu DNA, com fundadores oriundos de famílias estrangerias, a defesa de outras nacionalidades reflete uma visão pragmática de negócio. A taxa de desemprego fechou agosto em 4,4% em agosto, um dos índices mais baixos da história. Num ambiente como esse, preencher uma vaga torna-se um desafio capaz de minar o crescimento. Não importa o tamanho, setor ou região. A gráfica Page 1, no interior de Minnesota, levou um ano para preencher uma posição de coordenação na área operacional. Agora que a funcionária contratada deixou a função, a expectativa é de mais um ano até conseguir a reposição.
“Para cada vaga, talvez só tenha uma ou duas pessoas aptas para o trabalho. É muito pouco”, afirma Gail Desmet, gerente de Recursos Humanos da Page 1. “Se houver estrangeiros disponíveis, vou contratá-los, eu preciso de trabalhadores.” Ao menos 12, dos 64 trabalhadores, são imigrantes, incluindo o chefe da impressão, o mexicano Bem Galvez, que chegou ao país em 1988. A questão não respeita barreiras políticas. Em Tracy, cidade agrícola do Estado, fazendeiros que apoiaram o presidente Donald Trump reconhecem a importância dos estrangeiros. “Os Estados Unidos morreriam de fome se não fosse por eles”, afirma Dennis Fultz, dono de uma fazenda de milho de médio porte e eleitor republicano.
Proprietário de um rebanho de gados, a poucos quilômetros dali, Mike Landuyt endossa essa percepção. “Imigração é essencial para o nosso negócio”, afirma Landuyt. “É difícil encontrar mão de obra que aceite esse trabalho.” Como vice-presidente da Associação Bovina de Minnesota, ele é uma das muitas vozes fazendo lobby pela permanência dos imigrantes. Nos abates, o percentual dos estrangeiros chega a 80% do total.
Os “sonhadores”: Jaime e Vania nasceram no México e entraram ilegalmente na infância nos EUA, onde se casaram e tiveram um filho (Crédito:Divulgação)
POLÍTICA Apesar da retórica, a Casa Branca não está alheia a essa realidade. Porta-vozes reconheceram que a decisão dos “sonhadores” consumiu o presidente. A pressão corporativa pesou também sobre alguns republicanos, que passaram a se declarar a favor do programa, na contramão do grupo de 11 Estados comandados pelo partido, que ameaçavam processar a administração federal se o programa não fosse encerrado até 5 de setembro. Entrincheirado pela própria promessa de campanha, Trump tentou jogar aos dois lados.
Encerrou o programa, mas deixou aberta uma janela de seis meses para que o Congresso possa tomar as rédeas e criar uma legislação garantindo a extensão. “Congresso, prepare-se para cumprir o seu papel”, anunciou Trump, pelo Twitter. O anúncio foi seguido por protestos em todo o país. Executivos prometem uma onda de pressão ao Congresso. No passado, ao menos duas tentativas de passar programas parecidos no Legislativo falharam. “É um dia triste para o país”, afirmou Mark Zuckerberg, criador e presidente do Facebook. “A decisão não é apenas errada.
É particularmente cruel oferecer aos jovens o ‘sonho americano’, incentivá-los a sair das sombras, confiar no governo e depois puní-los.” Para quem tem os planos de vida atrelados à decisão, a sensação é de incerteza. “O Congresso não tem sido muito eficiente em passar leis nessa administração”, afirma o sul-coreano Jungrae Jang, de 27 anos, 12 vividos nos Estados Unidos. Com o diploma da faculdade de História, Jang conseguiu uma posição na prefeitura de Nova York. Seu sonho agora está ameaçado, com o risco real de deportação. “Sou americano. Não quero voltar ao meu país.”
Qual a diferença entre Trump e Obama? O país queria um presidente que não fosse um político profissional. O que estão vendo é que ele não se comporta como o esperado. Obama era um comunicador muito melhor, mas também não tinha ótimas relações no Congresso. Eu gosto da pauta de Trump, mas não concordo com seu método de comunicação. Se você quer conquistar algo, não é uma boa ideia ir ao Estado de alguém e lhe dar um soco na cara. Se quiser ter sucesso, precisa conquistar as pessoas.
Foi isso que aconteceu com o programa dos jovens imigrantes? A Justiça iria considerar o programa inconstitucional, porque era. O Obama abusou da autoridade com o DACA [ao criá-lo por decreto]. É um assunto muito sensível. Se vamos usar o caminho da lei, o presidente Trump nos deu uma oportunidade ao dizer “se o Legislativo está próximo de avançar com isso, então estou dando seis meses para que o façam”.
Mas o sr. acredita que a proposta passará? Com certeza. Estou preocupado com o jogo político envolvendo a negociação do limite do endividamento do governo, mas o DACA é um assunto muito maior para as pessoas que estão envolvidas e para o nosso país do que um mero instrumento de política.