Eles representaram 8% de 22.991 casos atendidos por serviços de saúde em 2016
Por dez anos, a deficiente intelectual Joana foi estuprada pelo próprio pai, na casa da família em Sumaré (SP). Maria, deficiente visual e auditiva, era abusada pelo motorista da van escolar, em Araraquara. Ana, com deficiência mental, foi violentada em um assalto, em Guarujá.
Os nomes são fictícios, mas os casos bem reais. Aconteceram no Estado de São Paulo, onde diariamente os hospitais atendem ao menos um caso de pessoa com deficiência vítima de estupro. Foram 368 casos no ano passado.
Os dados inéditos constam em levantamento do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), do Ministério da Saúde, feito a pedido da Folha. As informações são colhidas em hospitais públicos e privados.
Em cinco anos, o número de deficientes estuprados quase dobrou no Brasil, passando de 941, em 2011, para 1.803, em 2016. Os casos representam quase 8% dos estupros atendidos pelos serviços de saúde, que totalizaram 22.991 no ano passado. Para o ministério, o aumento não significa que estejam ocorrendo mais casos, mas sim que os municípios passaram a notificar mais esse tipo de ocorrência.
"Em 2011, começou a implantação do sistema. Só a partir de 2015, 2016, é que o sistema ficou mais estável e que vai ser possível observar a evolução", diz Fátima Marinho, diretora de doenças e agravos não transmissíveis do Ministério da Saúde.
A deficiência mental está presente em 41% dos casos de estupro, seguida da intelectual e do transtorno de comportamento (39% e 23%, respectivamente). Deficiências física, visual e auditiva somam outros 17%. Quase 24% dos brasileiros (45 milhões de pessoas) possuem algum tipo de deficiência, segundo o IBGE.
Apesar de representar só uma parcela dos estupros (nem todas as vítimas são levadas aos hospitais e 40% dos municípios ainda não reportam os dados), os números da saúde são os únicos a fazer esse recorte. A polícia não separa as vítimas deficientes de outras vulneráveis (como crianças e idosos).
Segundo Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que estuda a violência sexual no Brasil há mais de 20 anos, outro dado inquietante é que essas vítimas têm mais chances de sofrer estupros recorrentes.
Em estudo que avaliou dados do Sinan até 2014, Cerqueira concluiu que 36% de todas as vítimas de estupro possuíam um histórico de abusos anteriores. Entre as que tinham algum tipo de deficiência, a taxa foi de 42%. "É algo bestial", diz ele.
"Muitos dos abusadores são conhecidos dessas vítimas e aproveitam da condição de fragilidade, de vulnerabilidade", lembra Fátima.
É o caso do pai de Joana, de 68 anos, preso no mês passado. Segundo a jovem, os abusos começaram após a morte da mãe, há uma década. Denunciado por uma conhecida da família, o pai confessou o crime à polícia.
Em maio deste ano, outro caso semelhante chocou Mato Grosso. Um homem de 34 anos foi preso em flagrante em Sinop (a 480 km de Cuiabá) por estupro da própria filha de 13 anos, com paralisia cerebral. O crime foi denunciado pela mãe da menina.
"Um caso traumático, muito brutal, pois a menina vive em estado vegetativo, não consegue se comunicar, muito menos se defender", disse o delegado Carlos Muniz.
VULNERABILIDADE
O alto número de crianças violentadas, que já apareceu em estudos anteriores, também salta aos olhos no levantamento do Sinan: 73% das vítimas de estupros são menores de idade –26% têm menos de nove anos.
"Os dados da saúde trazem um aspecto duplamente odioso que os dados policiais não haviam captado até agora: a vulnerabilidade relacionada à idade e às deficiências", observa Cerqueira. Tocantins, Acre e Rio Grande do Sul são os Estados que, proporcionalmente, tiveram taxas mais altas de estupros de deficientes em 2016 –com 2,6, 2,2 e 1,6 casos por 100 mil habitantes, respectivamente.
Segundo Fátima Marinho, é preciso cuidado na avaliação das diferenças regionais porque em muitos locais, especialmente nas cidades pequenas, os profissionais de saúde ainda têm dificuldade de reportar casos de estupro, especialmente de crianças, porque são frequentemente ameaçados pelos criminosos.
"Às vezes, a criança aparece com herpes genital [doença sexualmente transmissível], a pediatra denuncia o abuso sexual, a polícia vai até a casa do acusado e ele aparece na unidade de saúde para ameaçá-la. Os profissionais ficam sem proteção."