Acesso aos documentos expõem a compra sistemática de centenas de políticos brasileiros
Demilton de Castro e Florisvaldo de Oliveira estavam suando. No estacionamento da JBS em São Paulo, eles tentavam, sem sucesso, enfiar uma volumosa caixa de papelão num limitado porta-malas de Corolla. Plena segunda-feira e aquele sufoco logo cedo. Manobra para cá, manobra para lá, e nada de a caixa encaixar. Até que, num movimento feliz, ela deslizou. Eles conseguiram. Estavam prontos para desempenhar a tarefa a que Florisvaldo fora designado. E que ele tanto temia. Dez dias antes, Florisvaldo despencava até uma rua na Vila Madalena, também em São Paulo, para fazer uma espécie de “reconhecimento do local” onde teria de entregar R$ 1 milhão em espécie. Seu chefe, o lobista Ricardo Saud, havia encarregado Florisvaldo do delivery de propina para o então vice-presidente da República, Michel Temer. O funcionário, leal prestador de serviço e carregador de mala, não queria dar bola fora. Foi dar uma olhada em quem receberia a bufunfa. Ao subir as escadas do prediozinho de fachada espelhada, deu de frente com a figura inclemente de João Batista Lima Filho, o coronel faz-tudo de Temer. “Como é que você me aparece aqui sem o dinheiro?”, intimou o coronel. “Veio fazer reconhecimento de que, rapaz?” Florisvaldo tremeu. “Ele me tocou de lá”, comentou com os colegas, ainda assustado. Receoso da bronca que viria também do chefe, Florisvaldo ficou quietinho, não contou a Saud que a entrega não fora feita.
Naquele 1º de setembro de 2014, Saud, o lobista, batia as contas dos milhões em propina que distribuía de lá para cá, para tudo que é político de tudo que é partido – a JBS não discriminava ninguém. “Cadê o dinheiro do Temer?” Florisvaldo admitiu sua falha. “Tá doido, Florisvaldo? Vai entregar esse dinheiro agora!” Lembrando da pinta do coronel, o funcionário replicou: “Só se o Demilton for comigo”. Toca Florisvaldo e Demilton a tentar enfiar a caixa com notas de R$ 50 no porta-malas. Demilton, quatro décadas de empresa, é o planilheiro da JBS. A Odebrecht tinha o drousys, o software de distribuição de propinas. A JBS tem Demilton, exímio preenchedor de tabelas do Excel. Demilton topou ajudar o amigo. Os dois deixaram o estacionamento da JBS ao meio-dia. Florisvaldo, meio nervoso, tocou a campainha. Depois de instantes angustiantes, o coronel Lima apareceu. “Trouxeram os documentos?”, perguntou Lima. Florisvaldo já tomava fôlego para carregar a caixa de papelão escada acima, mas o coronel ordenou que o dinheiro fosse depositado no porta-malas do carro ao lado. “Não tem perigo com essa parede espelhada aí?” Florisvaldo era todo paúra. “Não, fica tranquilo.” A transação estava completa.
Aquele 1º de setembro de 2014 era mais um dia intenso na maior compra já promovida no Brasil, segundo as evidências disponíveis, de uma eleição – de centenas de eleições. A JBS dos irmãos Joesley e Wesley Batista, maior empresa do país, viria a gastar, ou investir, quase R$ 600 milhões naquela campanha. R$ 433 milhões em doações oficiais, R$ 145 milhões entre pagamentos a empresas indicadas por políticos e dinheiro vivo – tudo isso já com a Lava Jato na rua. No raciocínio dos irmãos e de alguns de seus executivos, hoje delatores, os pagamentos, seja pelo caixa oficial, seja por empresas indicadas pelos políticos, seja diretamente por meio de dinheiro vivo, eram um investimento por favores futuros ou uma quitação por favores pretéritos. Favores não republicanos, evidentemente. Ou seja, havia uma relação de troca entre o dinheiro que saía da empresa e o que o político fazia por ela – mesmo que essa troca, em alguns momentos, não fosse verbalizada, por tão corriqueira e natural num quadro de corrupção sistêmica. Havia, em muitos casos, uma relação de troca criminosa, que se tipifica como corrupção.
Assim que a delação da JBS veio a público, em maio, a força irrefreável das provas contra o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves, provas de crimes em andamento, assim como a crise política que se instalou imediatamente, escamoteou o poder igualmente destrutivo dos crimes pretéritos cometidos por executivos da JBS – e por centenas, talvez milhares, de políticos. As provas apresentadas foram largamente ignoradas. Como os delatores haviam fechado o acordo poucas semanas antes, a empresa ainda não tinha levantado tudo o que poderia e deveria, em termos de evidências para corroborar os crimes descritos nos anexos da colaboração. Agora, a um mês do prazo estipulado para entregar à Procuradoria-Geral da República todas as evidências necessárias, os delatores e a JBS já dispõem de um novo e formidável conjunto de documentos.
Nas últimas semanas, ÉPOCA teve acesso, com exclusividade, a esses papéis inéditos – milhares deles. Investigou os principais casos ali presentes e obteve informações, reservadamente, junto a alguns dos envolvidos nos episódios mais relevantes dos crimes apontados nas delações. Há planilhões de propina que perfazem quase dez anos de campanhas – da eleição municipal de 2006 à eleição presidencial de 2014. Há comprovantes bancários. Há notas fiscais frias. Há contratos fraudulentos. Há, ainda, depósitos em contas secretas no exterior. Em comum, as evidências corroboram ou comprovam pagamentos ilícitos a políticos, numa escala que, ao menos no Brasil, nem mesmo a Odebrecht atingiu. De 2006 a 2017, a contabilidade da propina da JBS – e outras empresas dos irmãos Batista – a políticos é espantosa: R$ 1,1 bilhão. Mais precisamente, R$ 1.124.515.234,67. Desse volume extraordinário de pagamentos, R$ 301 mil ocorreram em dinheiro vivo e R$ 395 mil por meio de empresas indicadas por políticos. Houve, por fim, R$ 427,4 milhões em doações oficiais.
Da primeira parte dessa investigação, que ÉPOCA publica agora, emergem provas consistentes sobre casos conhecidos por poucos, como pagamentos fraudulentos a empresas indicadas por Temer à JBS, na distante campanha presidencial de 2010. Ou, ainda, dos pagamentos igualmente fraudulentos a empresas indicadas por José Serra em sua campanha presidencial, também em 2010. Há as provas dos famosos extratos das duas contas mantidas por Joesley nos Estados Unidos – e não na Suíça – com saldo de propina no BNDES, por combinação com o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. São aquelas contas cujo saldo, cerca de US$ 150 milhões, serviu para financiar a campanha de Dilma em 2014 – e também dos partidos que toparam, por valores altíssimos, aliar-se a ela.
Surgem com especial força, no entanto, casos inéditos, como a propina de US$ 1 milhão paga a Antonio Palocci, em 2010, por meio de uma conta nos Estados Unidos. Ou os pagamentos em dinheiro vivo ao presidente do Senado, Eunício Oliveira, entre outros parlamentares; e a ministros do governo Temer, como Bruno Araújo, Gilberto Kassab, Helder Barbalho e Marcos Pereira. Kassab, por exemplo, também aparece como beneficiário de um valor extraordinário em propinas, recebidas, segundo os documentos, até o ano passado: R$ 18 milhões.
O acervo, sobre o qual os investigadores da Procuradoria-Geral da República vão se debruçar por meses, demonstra que a JBS comprava sistematicamente políticos de todos os partidos. Não havia critério ideológico; o valor do político era proporcional a sua capacidade de proporcionar benefícios à empresa. Em estados como Ceará, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, onde a JBS tinha mais interesses comerciais, a quantidade de propina distribuída era proporcionalmente maior. Como a JBS tinha interesses e vendas em todo o território nacional, os investimentos em políticos alcançavam o país inteiro, com uma capilaridade superior ao esquema da Odebrecht. Enquanto a Odebrecht, uma empreiteira, atuou no atacado, na compra de políticos maiores, a JBS, no comércio de carne, atuava no varejo, em busca não só dos grandes líderes nacionais, como também dos políticos regionais que poderiam remover obstáculos.
O crescimento da JBS é rápido, explosivo. Entre 2006 e 2014, a receita líquida do grupo cresceu cerca de 2.800%, dos R$ 4,3 bilhões de uma grande empresa brasileira para os R$ 120,5 bilhões características de uma gigante mundial, graças em boa parte ao bom relacionamento com o PT, que lhe proporcionou acesso a fartos financiamentos amigos do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Quanto mais crescia, mais a JBS tinha negócios pelo país, mais seus interesses se diversificavam, mais ela precisava do governo e dos políticos. Por isso, no mesmo período, a propina distribuída subiu junto. Os registros internos mostram um salto de 4.900% nos gastos com corrupção, de R$ 12,5 milhões em 2006, ano da reeleição do então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, para R$ 617 milhões em 2014, na reeleição de Dilma Rousseff. Em 2006, a JBS pagou propina para políticos de 11 partidos em seis estados; em 2014 foram beneficiados integrantes de 27 partidos em todos os estados brasileiros.
Tais volumes necessitavam de um acompanhamento cuidadoso e de uma logística afiada. A operação rotineira da propina era artesanal. Em vez de um Setor de Operações Estruturadas e do drousys, como tinha a Odebrecht, a JBS tinha Demilton e Florisvaldo, os dois funcionários dedicados. Os acertos com os políticos eram feitos por Joesley Batista (na maioria dos casos), por seu irmão Wesley (em poucos casos) e pelo lobista Ricardo Saud, todos colaboradores da Procuradoria-Geral da República. Uma vez que o crédito fosse aprovado por Joesley, Demilton era avisado por telefone ou pessoalmente e se encarregava de combinar com quem de direito. Nos casos em que bastava pagar uma empresa indicada pelo político, Demilton só tinha de cobrar as notas fiscais frias; em alguns casos, nem isso: os interessados entregavam os papéis e Demilton entregava dinheiro vivo. Para depósitos no exterior, Demilton acionava um doleiro chamado Chico, baseado no Uruguai. Demilton organizava a conta-corrente do grupo com Chico: os pedidos de pagamento eram feitos por e-mail e nunca falhavam. Para fazer pagamentos próprios de propina no exterior, a JBS tinha duas contas no banco Julius Bär em Genebra, na Suíça, a Lunsville International e a Valdarco Investments – aliás, foi de lá que saíram os pagamentos para Palocci e para manter o silêncio do doleiro Lúcio Funaro, entre outros que quiseram receber no exterior.
No Brasil havia facilidades das quais só a JBS dispunha. Com clientes no varejo espalhados por todo o país, como supermercados, atacados e frigoríficos, havia um fornecimento garantido de dinheiro vivo para atender à demanda dos políticos. Assim, boa parte dos pagamentos nessa modalidade era resolvida com uma ligação. Seja no Rio de Janeiro, seja em Minas Gerais, Demilton entrava em contato com o cliente e pedia que separasse um valor. Era comum que empresários e até políticos buscassem valores diretamente, tamanha a despreocupação com a operação ilegal. Foi assim com o senador Ciro Nogueira, do Piauí, o principal líder do PP, partido que apoia o governo Temer; foi assim com Raimundo Colombo, governador de Santa Catarina pelo PSD, com o suplente de senador Antonio Carlos Rodrigues, do PR de São Paulo, e com o ministro da Integração Nacional, Helder Barbalho, do PMDB.
No Nordeste, onde a chaga do voto de cabresto ainda persiste e a facilidade para lavar dinheiro em postos de gasolina ou compra de gado é maior, Joesley Batista encarregou o publicitário André Gustavo, uma espécie de Marcos Valério de Pernambuco, para cuidar de entregas de dinheiro. Quando necessário, Joesley autorizava a contratação de um carro-forte e André recolhia o dinheiro nos clientes da JBS e transportava até o político que deveria ser beneficiado. Foi André quem, segundo a JBS, organizou a entrega de propina em dinheiro vivo ao presidente do Senado, Eunício Oliveira, ao senador Jader Barbalho e a seu filho, o ministro Helder Barbalho, todos do PMDB. André Gustavo foi preso nesta semana na 42ª fase da Operação Lava Jato, acusado de ajudar o ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras Aldemir Bendine a chantagear a Odebrecht, obter uma propina de R$ 3 milhões e lavar dinheiro. Como Marcos Valério, André Gustavo está na cadeia.